domingo, 30 de abril de 2023

O SER

 

Oh, Mestre,
Diz-me como encontrar
Desapego, sabedoria e liberdade!
 
Meu filho,
Se desejas ser livre
Afasta-te do veneno dos sentidos.
Procura o néctar da verdade,
Do amor e do perdão,
Da simplicidade e da felicidade.
 
Terra, fogo e água,
O vento e o céu –
Nada disto tu és.
Se desejas ser livre,
Que saibas que és o Ser,
A testemunha de tudo,
O coração da consciência.
 
Põe de lado o teu corpo.
Senta-te na consciência de ti mesmo.
Irás de pronto ser feliz,
Para sempre sereno,
Para sempre liberto.
 
Não pertences a uma casta,
Nenhum dever te aprisiona.
Sem forma e livre,
Para além do alcance dos sentidos,
A testemunha de todas as coisas.
 
Então, sê feliz!
 
Certo ou errado,
Alegria ou pesar,
Estas coisas só à mente pertencem.
Não são posses tuas.
 
Em verdade, não és tu
Quem age ou desfruta.
Tu estás em toda à parte,
Para sempre livre;
Para sempre e verdadeiramente livre,
A única testemunha de todas as coisas.
 
Mas se te vês como separado de tudo,
Então aprisionas-te.
 
“Eu faço isto, eu faço aquilo”.
A grande e negra serpente do egoísmo
Mordeu-te!
“Eu nada faço”:
É este o néctar da fé.
Então, bebe-o e sê feliz!
 
Que saibas que és Um,
Consciência pura.
Com o fogo desta certeza,
Incendeia a floresta da ignorância.
 
Liberta-te das tristezas
E sê feliz.
Sê feliz!
Pois és alegria, uma alegria
Que não conhece limites.
 
És a própria consciência.
 
Assim como uma corda enrolada
Confunde-se com uma serpente,
Tu és confundido com o mundo.
 
Se pensas que és livre,
Livre és.
Se pensas que estás preso,
Preso estás.
Pois verdadeiro é o dizer:
És aquilo que pensas.
 
O Ser parece-se com o mundo,
Mas não passa duma ilusão.
 
O Ser está em toda a parte.
 
Uno.
Sereno.
Livre.
Perfeito.
 
A testemunha de todas as coisas,
Consciência
Sem acção, apego ou desejo.
 
Medita no Ser.
Indivisível,
Elevada consciência.
 
Abandona a ilusão
Dum ser separado.
Abandona o sentimento,
O dentro ou o fora,
Que és isto ou aquilo.
 
Meu filho:
Porque pensas ser o corpo,
Por muito tempo tens-te aprisionado.
Que saibas que és consciência pura.
 
Com este saber como tua espada
Corta as tuas correntes.
E sê feliz!
 
Pois já és livre,
Sem acção ou defeito,
Luminoso e radiante.
 
Estás preso
Somente pelo hábito da meditação.
A tua natureza é consciência pura.
Tu fluis em todas as coisas
E todas as coisas fluem em ti.
 
Mas acautela-te
Com a estreiteza da mente!
És sempre o mesmo,
Insondável consciência,
Sem limites e liberta,
Serena e imperturbável.
 
Deseja somente a tua própria consciência.
O que quer que tome forma, é falso.
Somente o informe perdura.
Quando compreenderes
A verdade deste ensinamento
Não nascerás de novo.
 
Pois Deus é infinito,
Dentro do corpo e fora do corpo,
Como um espelho,
E a imagem aparecendo no espelho.
 
Como o ar está em toda a parte,
Fluindo em redor duma jarra
E enchendo-a,
Assim Deus está em toda a parte,
Enchendo todas as coisas,
Fluindo através delas para sempre.



Ashtavakra (? - ?) ¹










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001)












(1) Um antigo sábio indiano, sobre o qual muito pouco se conhece. Não é identificável um lugar de nascimento, sequer o século em que viveu. O seu nome, a única pista, talvez, capaz de nos conceder um melhor vislumbre do indivíduo em causa, traduz-se por "oito deformidades", referindo-se àquelas que supostamente o seu corpo físico apresentava.
Mas a sua sábia presença perdurou nas escrituras sagradas do Hinduísmo, atravessando séculos, de geração em geração, além do conhecimento permitido pela obra onde se insere o texto aqui traduzido. Porém, importa esclarecer que também não é certo que Ashtavakra tenha sido o verdadeiro autor da mesma. Certos estudiosos colocam a composição de "A Canção de Ashtavakra" algures pelos anos 600 a 400 a.C; outros, defendem tratar-se duma criação posterior, datada do século VIII da nossa era. Dado o profundo e significativo conteúdo da mesma, é certo que tais pormenores pouco importarão.
Para se obter um melhor contexto sobre a exposição dos poemas, esclarece-se que a obra está escrita em forma de diálogo, entre o famoso sábio e Janaka, o Rei de Mithila - uma região situada no nordeste do actual território indiano. 








"Bloom and Blossom"
- Jaanika Talts -