terça-feira, 17 de dezembro de 2019

REGRESSO AO CAMPO (Primeiro de cinco poemas)


Jovem, e já o mundo me desiludia tanto
pois o que eu amava mesmo eram as montanhas

porém tonto, me deixei apanhar pelas armadilhas do mundo
e treze anos passaram assim num abrir e fechar de olhos

mas o pássaro em cativeiro tem saudades da floresta
o peixe no aquário anseia pelas águas revoltas de outrora

eu limpo as terras do sul entretendo a minha rudeza,
levando uma vida simples, pois regressei à minha terra

o lugar onde moro não vai além de uns casais
onde tenho uma casita com aposentos vários

colmos e salgueiros dão sombra ao alpendre das traseiras
pessegueiros e pereiras decoram o jardim da frente

lá ao longe, o casario de uma aldeia perdida e vaga
o fumo das chaminés subindo para o céu

cães ladram em becos distantes e baldios
galos cantam trepando sobre arbustos

no coração da casa nem uma nódoa
não cabem tumultos onde o silêncio mobila os quartos

tanto tempo estive em cativeiro
que alegria por voltar ao campo.




Tao Yuanming (365 - 427)










(Versão de Manuel Afonso Costa in "Poesia e Prosa - Tao Yuanming", Assírio & Alvim, outubro de 2019.)















(Tao Yuanming,
Cai Ju Dong Li Xia.)


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Seis haikus outonais de Bashô


I.

imóvel contemplo a lua
e os outros pensam
que sou cego 


II.

o vento rasga-me o corpo
até ao coração - 
que tempo este! ¹


III.

colher batata-doce
durante a lua cheia - 
que boa vida!  


IV.

geada a desfazer-se - 
ainda abertas
as flores choram ²


V.

ah as brisas de outono! - 
dorme ao ar livre
e compreenderás o meu poema 


VI.

no ramo seco
pousou um corvo - 
anoitecer de outono ³







Matsuo Bashô (1644 - 1694)












(Tradução de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016.)












(1) Bashô editou este haiku antecedido pela seguinte legenda: "Na era Jôkiô, durante a oitava lua, deixei a minha casa junto ao rio. O vento era muito frio."
Resta esclarecer que a era referida pelo poeta corresponde, no calendário ocidental, ao período temporal compreendido entre 1684 e 1688. É um dos haikus mais famosos de Bashô, e é com ele que inicia o seu livro de viagens Diário de um Esqueleto Abandonado à Natureza.  




(2) A parte final deste haiku baseia-se num verso de uma canção bastante em voga na altura, e que falava precisamente da tristeza das flores - usando a imagem do orvalho, ou neste caso da geada a derreter, como metáfora para o acto de chorar. 




(3) Igualmente um dos haikus mais famosos de Bashô, quase ao nível daquele da rã em eterno salto para as águas de um certo tanque. Foi reescrito algumas vezes, sendo que originalmente os corvos apareciam em maior número. Foi depois reduzido para um só, e foi assim que  Kyoriku, um amigo do poeta, o ilustrou para a posteridade. É também um dos vários haikus que por si só constituem um acto de rebelião contra as regras e os preceitos do próprio género, uma vez que o verbo surge num tempo passado. Coisas só ao alcance dos grandes mestres. 











("Sunset Crow",
de Patty Baker)


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

OVOS E O REI


Certo dia, um rei e o seu séquito entraram pela casa de chá onde Nasrudin¹ trabalhava.

Pediram omeletas e, depois da refeição, o rei disse para o mulá² :

- Quanto lhe devo?

- Para o senhor e os seus companheiros, as omeletas ficam a dez moedas de ouro.

O rei ergueu as sobrancelhas.

- Os ovos são muito caros por aqui. São assim tão raros?

Respondeu-lhe Nasrudin:

- Aqui não são os ovos que são raros, majestade... O que é raro são as visitas de um rei. 




Anónimo.










(Tradução de Luzia Almeida a partir da recolha de J. A. Decourdemanche, em "A Sabedoria dos Idiotas", Alma dos Livros, setembro de 2019.)












(1) Nasrudin Hodja é uma personagem que vive entre o mito e a realidade. O seu nome significa, literalmente, "A Vitória da Fé". Julga-se, apesar de todo o mediatismo que goza no mundo oriental, concedendo-lhe um estatuto de lenda, que terá vivido no século XIII na actual Turquia - à época o sultanado seljúcida da Anatólia. Foi um mestre sufi de apurado humor e de uma inteligência ímpar, tanto que, graças à sua profundidade nem sempre apreendida ao primeiro contacto, por diversas vezes passa por um simples tolo... Mas com sábios intentos, diga-se.
A sua figura tornou-se mito com o passar dos séculos, e actualmente existem várias centenas de histórias e anedotas que no oriente se contam divertida e descontraidamente, tendo Nasrudin como figura central. Tantas que já se tornou impossível distinguir as que foram realmente protagonizadas em vida pelo mulá das que posteriormente se inventaram. 
Por vezes é retratado como um sábio, outras como um tolo; numas é um mulá, noutras uma figura de vida simples e humilde. Mas a essência é a mesma: passar uma mensagem significativa através da aparente tolice do comportamento da sua figura, usando assim o riso e o ridículo como um modo de atingir o mais fundo do ser humano. De grande simplicidade, são na verdade histórias com um elevado teor místico; contrariam a seriedade típica de sociedades reprimidas nos seus impulsos naturais e, assim, rompem o denso tecido da obscuridade em que vivem. São, por outras palavras, histórias que visam o despertar espiritual do seu ouvinte. 
Ainda nos dias de hoje, no princípio do mês de julho, realiza-se na sua cidade natal, Akshehir, uma festa em honra da divertida personagem. 



(2) De um modo geral, esse nome era atribuído a todo o homem muçulmano instruído, embora seja aos clérigos dessa religião que mais comummente ele se destina. Mas como o homem letrado recebia, à época, formação religiosa, tornando-se versado na lei sagrada do Islão, os mais simples concediam-lhe o mesmo título, ainda que não se tornasse para a vida um líder religioso.  
Na origem, mawlã significa "vigário", "mestre" e até "guardião".














(Nasrudin montado no seu burro, 
miniatura do séc. XVII de autor desconhecido, 
originária da Turquia.)



sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O AVÔ E O NETO


A misteriosa Índia. Um entardecer cálido e alaranjado. As andorinhas traçavam arabescos sobre o firmamento ilimitado. Um avô sábio caminhava feliz junto do seu neto. Era um menino vivaz e esperto, cheio de inquietudes espirituais, ávido de respostas.

- Avô - disse ele, quebrando o perfeito silêncio da tarde. - Quero perguntar-te uma coisa: quando o corpo morre, o que acontece?
- O corpo morre, mas o Ser nunca morre. Ele é o Ser de todo o Universo. É a essência subtil de tudo o que existe.
- Ó avô! - exclamou o menino. - Não percebo... podes explicar melhor?

O avô disse:

- Vai buscar um fruto daquele castanheiro e traz-mo. 

O menino, desembaraçado, pegou numa castanha e manteve-a entre as suas mãos.

- Tira-lhe a casca - disse o avô - e diz-me o que vês.
- O fruto.
- Abre o fruto. O que vês?
- Grãos - disse o menino.
- Abre um grão. O que vês?
- Grãozinhos minúsculos.
- Abre um. O que vês?
- Nada querido avô, nada.

E o avô declarou:

- Essa essência subtil que tu não vês é o Ser. Mantém a grande árvore de pé. Mantém-nos vivos a ti e a mim. Faz com que o rio flua e o fogo arda. Anima todos os vastos espaços. Tu, meu muito querido, muito amado neto, não vês essa essência subtil, mas está aí. Ela respira em ti, pensa em ti, fala em ti. 

O menino, satisfeito, agarrou a mão trémula e envelhecida do seu querido avô. Caminhando aprazivelmente, fundiram-se com o horizonte como o açúcar se funde com a água.




Anónimo.







(Texto recolhido por Ramiro Calle e antologiado em "Os Melhores Contos Espirituais do Oriente" - A Esfera dos Livros, 4ª ed., setembro de 2010, tradução de Margarida Cardoso de Meneses.)












("Smiling Old Man" - Rozller)



domingo, 13 de outubro de 2019

ARUNI E SVETAKETU


Svetaketu era um jovem com muitos desassossegos espirituais e também com muita confusão mental. Ouvia muitas vezes falar da Consciência ou Ser, naquele em que os hindus crêem, mas ele continuava sem compreender quando lhe diziam que o Ser tudo permeia e em tudo se diversifica. Como é isso possível?, questionava-se inquieto e desorientado. 

Como Svetaketu tinha um óptimo relacionamento com o pai, Aruni, resolveu consultá-lo. O pai explicou-lhe: 

- Querido filho, assim como as abelhas preparam o mel recolhendo o néctar de diversas plantas para com ele fazer a sua essência, assim como o néctar não consegue discriminar e dizer: «eu sou desta planta e não sou daquela», também as criaturas não sabem que estão imersas no Ser Supremo. 

Quando Svetaketu fez doze anos foi enviado a um mestre para ser instruído nos Vedas¹ durante os doze anos seguintes. 

Depois desses doze anos terem passado, o jovem achava que era um sábio e por isso se tinha tornado arrogante e muito vaidoso. De regresso à casa paterna, Aruni logo se apercebeu do temperamento do filho e disse-lhe: 

- Por te julgares sábio, meu filho, tornaste-te arrogante. Que tristeza! Contudo, não sabes que o Ser Supremo é aquele pelo qual o que não se ouve é ouvido, o que não se pensa é pensado e o que não é conhecido se conhece. 

Era certo que o jovem não sabia nada disto. Como, sem dúvida, era inteligente, apercebeu-se da sua ignorância e com humildade disse: 

- Meu pai, ensine-me essas verdades. 

Aruni começou a falar: 

- Querido filho, da mesma forma que conhecendo um pedaço de argila se conhece tudo o que é feito de argila, pois todas as variantes não passam de nomes e cada nome não é mais do que uma palavra, enquanto a argila é a verdade, o real. Meu filho, da mesma forma que conhecendo um lingote de ouro, ou de cobre ou uma jóia se conhece tudo o que é feito com esses materiais, uma vez que todas as variantes não passam de nomes e cada nome não é mais do que uma palavra, e o ouro e o cobre são a verdade, o real. Da mesma forma, meu filho, que quando temos conhecimento de uma tesoura de ferro tudo o que é de ferro se conhece, pois todas as variantes não são mais que nomes e os nomes não são mais que palavras, e o ferro é a única realidade. 

Então o jovem apercebeu-se de quão grande mestre era o pai. Também compreendeu com lucidez que ele e o pai eram animados pelo mesmo Ser. Pai e filho abraçaram-se. A dualidade na realidade. 

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«Ainda que as pérolas do colar sejam inúmeras, o fio que as encadeia é um e o mesmo.»





Anónimo. 




("Contos Espirituais da Índia", A Esfera dos Livros, Maio de 2019 - Antologia organizada por Ramiro Calle.)










(1) Os Vedas são um conjunto de quatro livros que formam a base das sagradas escrituras do hinduísmo, tendo o mais antigo de todos, no mínimo, quatro mil anos de existência.














terça-feira, 17 de setembro de 2019

Quatro haikus de Kobayashi sobre animais - Letra A


I. 

as abelhas
em volta do poste - 
reunião de condomínio


II.

como se não mais
pudessem regressar
as andorinhas rodopiam no ar


III.

o pinheiro do ano novo
já chega podado
pela boca do antílope-cabra¹


IV. 

vassoura pendurada - 
a aranha no canto
está tranquila




Kobayashi Issa (1763 - 1827) ²









(Tradução de Joaquim M. Palma in "Kobayashi Issa: Os animais - haikus", Assírio & Alvim, 2019.)










(1) O antílope-cabra japonês, Capricornis crispus, é um animal selvagem que vive em terrenos montanhosos. 




(2) Nasceu Kobayashi Yataro, numa aldeia do actual distrito de Nagano. O seu pai era fazendeiro, e apesar da vida aparentemente estável cedo o pequeno Yataro se privou de mãe. O pai tornaria a casar e daí nasceria uma história longa de desavenças com a sua madrasta - e posteriormente com os filhos desta. 
A sua vida foi, de facto, atormentada, algo que abordou nos vários diários que escreveu, marcada por distúrbios familiares, pela morte de vários filhos e da sua primeira esposa e outras incidências ocasionais, como o incêndio que destruiu por completo a sua residência meses antes de falecer.
Aprendeu a ler, curiosamente, com um poeta. Aos 25 anos abandonou a terra natal e a difícil vida que aí tinha e foi estudar o haiku com um professor que seguia a tradição do grande Bashô. Foi no seio deste grupo que Kobayashi começou a usar o nome Issa e publicou os seus primeiros poemas, tendo vindo a tornar-se o mestre do grupo após a morte desse professor. No entanto, acabaria renegado um ano depois por se ter afastado em demasia dos preceitos do haiku mais tradicional. A ligação às estações do ano deixou de ser obrigatória na doutrina que Issa ensinava; além disso, professava um afastamento à ligação com a natureza e seus elementos (estes haikus são obviamente a excepção.) O seu trabalho tornou-se mais subjectivo, impregnado de crítica social e por vezes dum humor bem apurado, donde sobressai uma imensa piedade ou compaixão para com as agruras da existência humana. Na verdade, apesar de muitos criticarem o seu sentimentalismo, Issa abandona a obrigação de mergulhar na natureza para privilegiar o homem e as suas emoções. Para todos os efeitos, foi um vanguardista do estilo que, tendo ficado órfão muito cedo, deixou o cariz desse sentimento impresso um pouco por toda a sua obra. Apesar das críticas, foi um autor bastante lido no seu tempo.
Assolado pela morte da mulher e dos filhos, cada qual em seu ano mas todos em idades tenras, pelos dez anos seguintes viajou sem plano ou poiso fixo. Depois, torna-se monge budista, embora sem regime de reclusão ou sujeito às obrigações dos templos. 
Casou-se novamente aos 63 anos, mas divorcia-se meses depois. Aos 64 contrai novamente matrimónio e estava prestes a ser pai de uma filha quando falece. 
Hoje, ninguém no mundo das letras fica indiferente ao talento daquele que justamente se considera um dos maiores nomes da arte do haiku.









(O autor, em retrato de Muramatso Shunpo.)



quarta-feira, 7 de agosto de 2019

CANÇÃO XXXIII


Para quê a palavra,
quando o amor tornou
ébrio o coração?

Embrulhei o diamante
no meu manto. Para quê
desenrolá-lo uma e outra vez?

Quando a carga era leve,
o prato da balança subia.
Agora que está cheio,
para quê pesá-lo?

O cisne levantou voo
rumo ao lago além-montanhas.
Por que deverá continuar
à procura de charcos e valas?

O teu Senhor habita em ti.
Para quê abrir os olhos exteriores?

Kabir diz: Escuta, irmão:
o meu Senhor, que o olhar me arrebata,
a mim se uniu. 





Kabir (1440 - 1518)








(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa de Rabindranath Tagore - "Songs of Kabir", 1915).













(Golden Afternoon Meditation, 
de Laura Iverson.)




quinta-feira, 4 de julho de 2019

Quatro poemas japoneses dos períodos Kamakura e Muromachi (1185 - 1603)


I.

O cuco cantou:
olhei na direcção do canto
mas só aí estava
a lua da madrugada.


Fujiwara No Sanesada (1139 - 1192)



II.

Dominado pela escuridão,
a sombra debaixo duma árvore,
construo a minha pousada;
e esta noite o meu estalajadeiro
será uma flor.


Taira Tadanori (1144 - 1184)



III. 

Tarde de chumbo.
Espero-te na praia
e tu não chegas.
Como a água que ferve
sob o sol - assim ardo.


Fujiwara No Sadaie (1162 - 1241)



IV.

Vejo uma flor caída
voltar para o ramo.
Ah! Uma borboleta.


Arakida Moritake (1473 - 1549)







(Traduções de Luís Pignatelli, in "A Pedra-que-mata, Poesia Japonesa" - Língua morta, 2016.)









(Pintura de Xu Xi, artista chinês (886 - 975))




domingo, 9 de junho de 2019

Seis haikus veranis de Bashô (Parte II)



I.

a borboleta só voa
no espaço 
onde há luz


II.

papoila branca - 
borboleta oferecendo uma das asas
como recordação


III.

visto roupa 
feita de asa de cigarra - 
agora já posso cantar! ¹


IV.

gota de água
esquecida por alguém - 
a flor do meloeiro


V.

embriagados
os cravos florescem
tombados sobre as pedras


VI.

não cabe num dia inteiro
o canto
da cotovia






Matsuo Bashô (1644 - 1694)










(Tradução e adaptação de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016.)












(1) Este haiku surge antecedido pelo seguinte comentário do seu autor: "O meu amigo Sanpu mandou-me, como prenda de Verão, um casaco de tecido muito fino."












("Bird on a plum blossom tree", em pormenor.)



quarta-feira, 22 de maio de 2019

Quatro breves poemas de Kahlil Gibran



I. Cantando No Silêncio

A vida canta nos nossos silêncios
e sonha no nosso sonho.
Mesmo quando nos sentimos abatidos e derrotados,
a vida senta-se num trono nas alturas.
E quando choramos,
a vida sorri ao dia
e é livre mesmo que
arrastemos as nossas correntes.



II. Entre

Para sempre caminho nestas praias,
entre a areia e a espuma do mar.
A maré alta apagará as minhas pegadas
e o vento levará a espuma.
Mas o mar e a praia
aqui ficarão para sempre.


III. Olhos De Coruja

A coruja, cujos olhos adaptados à noite
são cegos para o dia,
é incapaz de desvendar o mistério da luz.
Se queres realmente ver o espírito da morte,
abre o teu coração para o corpo da vida.
Pois a vida e a morte são uma só coisa,
tal como o rio e o mar são um só.


IV. As Árvores São Poemas

As árvores são poemas
que a terra escreve sob o céu.
Nós as derrubamos
e com elas fazemos papel,
onde registamos todo o nosso vazio.






Kahlil Gibran (1883 - 1931)











("Kahlil Gibran: O Livro da Vida", Albatroz, 2018 - e
dição de Neil Douglas-Klotz; à excepção do quarto poema, uma versão de Pedro Belo Clara a partir do original.)











(Kahlil Gibran)