sexta-feira, 30 de junho de 2017

Quatro poemas de Shih Te


I.

Se quiseres ser feliz,
não há outra via que não a do eremita. 

Nas matas, as flores crescem 
até se assemelharem a um brocado sem fim
- a cada nova estação renovadas cores.

Toma o teu lugar junto dum penhasco
e direcciona o rosto para poderes observar
a caminhada da lua.

E eu? Deveria permanecer numa alegria serena,
mas não consigo deixar de pensar
nas outras pessoas.


II.

Sempre fui Shih Te, o órfão.

Não é um nome acidental,
embora possua família:
Han Shan é meu irmão.
Somos dois homens de coração idêntico,
entre nós não há a necessidade
dum amor vulgar.

Se desejares saber a nossa idade...
Tal como o Rio Amarelo, não é clara.


III.

Os meus poemas são poemas,
ainda que certas pessoas os chamem de sermões. 

Bem, poemas e sermões têm de facto algo em comum:
quando os lês, deverás ser cuidadoso.
Tem atenção a cada linha, mergulha em cada detalhe.
Não digas apenas que são fáceis.

Se viveres a tua vida deste modo,
imensas coisas curiosas poderão acontecer.


IV.

Ganância, ira, ignorância: 
bebe longamente destes vinhos envenenados 
e ébrio repousa na escuridão, nada sabendo...

Faz da riqueza o teu sonho, 
e o teu sonho será uma gaiola de ouro. 

A amargura é a causa de todo o azedume.
Desiste de tudo ou vive no seio da ilusão.

É bom que despertes rapidamente.
Desperta e retorna a casa.




Shih Te (séc. IX) ¹








(Versões de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa elaborada por J. P. Seaton em "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)







(1) Mais um nome cuja história de vida permanece maioritariamente na obscuridade. Aliás, como o poema que nesta publicação surge em segundo lugar permite adivinhar, "Shih Te" nem sequer é um nome por si só, mas uma alcunha, podendo significar "órfão", como se optou, mas igualmente "abandonado", "sem tecto" e até "acolhido" ou "adoptado". 
Uma das histórias possíveis de serem aceites conta que, um dia, Feng Kan, um monge poeta do templo Kuo-ch'ing, nas montanhas T'ien-t'ai, passeando por uma povoação perto desse local, escutou o choro de uma criança. Teria ela aproximadamente dez anos de idade, e fora abandonada pelos seus pais. O monge acolheu a criança e levou-a para o seu templo, que o eremita Han-Shan costumava visitar em busca de trabalhos pontuais, ficando o jovem abandonado a desempenhar diversos papéis na cozinha do edifício religioso. 
Shih Te, Han Shan e Feng Kan formaram um trio célebre e uma amizade profunda, embora o nosso poeta de hoje fosse consideravelmente mais novo que os outros dois. Escreveram diversos poemas, espalhados por rochas e cercas, além do local tradicional de registar a palavra escrita, todos eles trabalhos com óbvias influências do pensamento budista, mas não só. De Shih Te terão sobrevivido cerca de cinquenta poemas, todos eles muito breves, não mais que dez linhas, em regra, compostos de modo bastante directo e simples. A influência de Han Shan nos seus escritos é inegável. 
O problema maior, no que toca à autenticação dos trabalhos, reside no facto de Shih Te ser um apelido que muito provavelmente foi adoptado por outros que escolheram «a via do eremita» na quietude da famosa montanha. Significando, entre outras coisas, "órfão", como já se sabe, muitos ter-se-ão visto e sentido em lugar idêntico, espiritualmente falando, começando a assinar os poemas que então escreviam com a mesma nomenclatura. De facto, dos poemas recolhidos que registavam tal nome as discrepâncias de género e estilo são notórias, o que levanta fundamentadas suspeitas. Não será, pensa-se, o caso dos poemas aqui apresentados, legitimados por uma maior lógica de traçado e conteúdo, não obstante a dificuldade de tal certificação. 







(Shih Te e seu "irmão" Han Shan)




6 comentários:

  1. “Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem é preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovão. Para ser vitorioso você precisa ver o que não está visível.”

    Sun Tzu

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    1. E é bem provável que o tal convite para a "via do eremita" fosse um modo de começar a aprender a observar para além da aparência, uma vida que decerto privilegiaria um contacto mais íntimo com a sua real essência.
      Muito obrigado pela sua visita e pela significativa citação que deixou.
      Até breve.
      Beijos.

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  2. São poemas em forma de provérbios... bons coselhos, devem ser lidos devagar... cheirar e saborear do cálice que em hora degustas. Sorvi-os:Iníco meio e fim.

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    1. Nada há como saborear um bom poema, não é assim? =)
      Beijos e obrigado pela visita.

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