quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A FORMIGA SUPREMA


Três formigas encontraram-se em cima do nariz de um homem que dormia ao sol e, depois de se cumprimentarem, cada uma saudando as outras segundo o costume da sua tribo, ficaram ali a conversar. 

A primeira formiga disse: "Estas colinas e planícies são as mais estéreis que alguma vez vi. Procurei o dia inteiro por uma semente de qualquer tipo, mas nada se consegue encontrar."

A segunda formiga respondeu: "Eu também não encontrei nada, embora tenha percorrido todos os recantos e veredas. Isto é, creio eu, aquilo a que o meu povo chama terra mole e instável, onde nada cresce."

Então, a terceira formiga levantou a cabeça e disse: "Minhas amigas, neste momento estamos em cima do nariz da formiga suprema, a poderosa e infinita Formiga, cujo corpo é tão grande que não podemos vê-lo, cuja sombra é tão vasta que não podemos abarcar os seus contornos, cuja voz é tão alta que não podemos ouvi-la; e Ela é omnipresente."

Depois de a terceira formiga assim ter falado, as outras duas entreolharam-se e riram-se.

Nesse instante, o homem mexeu-se e, no seu sono, ergueu a mão e coçou o nariz, esborrachando as três formigas.




Kahlil Gibran (1883 - 1931) ¹ 








("Kahlil Gibran: O Livro da Vida", Albatroz, 2018 - edição de Neil Douglas-Klotz.)













(1) Foi em Bsharri, uma pequena aldeia do norte do Líbano, que nasceu um dos maiores poetas místicos de sempre. Ocupa actualmente o terceiro lugar da lista dos poetas mais vendidos da história, só superado por William Shakespeare e Lao-Tzé. 
Torna-se claro, ao mergulhar na sua obra, que o sucesso conhecido foi a merecida colheita dum inegável talento e sensibilidade, duma profunda visão nascida de extraordinários dotes contemplativos, capaz de mergulhar com extrema precisão no âmago da alma humana. Contudo, o facto de ter vivido grande parte da sua existência num país de grandes oportunidades como os Estados Unidos, terá certamente facilitado a difusão do seu valoroso trabalho. 
Tinha apenas doze anos de idade quando foi viver para Boston, Massachusetts, com a mãe e os seus três irmãos. O pai permanecera no Líbano, cumprindo pena por desvio de fundos públicos. A emigração visava, sobretudo, a salvação familiar duma vida que se antevia de pobreza e infelicidade. 
Contudo, três anos depois o jovem Kahlil decide regressar a casa para estudar árabe (embora se suspeite que tenha sido a sua mãe a sugeri-lo, de modo a afastá-lo do que ela considerava ser influências negativas do mundo artístico com que o filho começava a privar), e fá-lo numa escola maronita de Beirute, algo que irá moldar decisivamente o seu pensamento religioso e o modo de encarar o Homem e o Mundo. 
Regressa, porém, aos Estados Unidos em 1902, já com dezanove anos, e assiste, num espaço de apenas quinze meses, à morte da sua mãe, irmã e um meio-irmão, todos vítimas de tuberculose. Dois anos depois, em 1904, conhece a sua grande mecenas e musa, e possivelmente amante, Mary Haskell, editora e directora duma escola local. Começa a publicar vários poemas, alguns dois quais serão compilados num livro somente editado dez anos depois.
Kahlil começa a expandir horizontes e a revelar o seu admirável talento de forma cada vez mais segura. Com o apoio financeiro de Haskell, Gibran estuda dois anos em Paris. Depois, em 1911, muda-se para Nova Iorque e inicia uma longa correspondência íntima com a sua nova paixão, May Ziadeh, uma intelectual libanesa que vivia exilada no Egipto. 
É de sublinhar que os seus escritos, nesta primeira fase, eram todos originalmente escritos em árabe. Apesar de falar o inglês, Gibran teve de esforçar-se para dominar a língua na sua forma escrita e entender perfeitamente todos os seus preceitos gramaticais. Somente em 1918 é que lança o seu primeiro livro totalmente escrito em inglês, "The Madman" ("O Louco"). 
Em 1920 reúne outros escritores e poetas árabes em exílio nos Estados Unidos e ambos fundam uma sociedade literária chamada "A Liga da Caneta". O seu trabalho, tanto literário como ao nível da pintura, continua a ser amplamente difundido, e em 1923, após uma longa espera, edita finalmente aquela que seria a sua obra-prima, o extraordinário livro denominado "O Profeta". Escusado será dizer que a obra obteve um sucesso imediato. Iniciará igualmente neste período uma amizade com aquela que será muito em breve a sua nova musa e editora, Barbara Young. 
Em 1928 ainda publica outro grande sucesso seu, o livro "Jesus, O Filho do Homem", mas apenas três anos volvidos sucumbe, precocemente, aos quarenta e oito anos de idade, a uma cirrose hepática. Cumpre-se no ano seguinte, em 1932, a vontade do poeta: o regresso ao seu Líbano natal e a Bsharri, acontecimento esse acompanhado à época por um enorme cortejo. Repousa hoje no mesmo local, um antigo mosteiro entretanto transformado em museu que honra a memória dum dos maiores poetas de sempre. 









(Kahlil Gibran, em retrato)



terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Seis haikus de Bashô


I. ¹

chuvas e neblinas - 
o dia em que não se vê o Monte Fuji
é o mais delicioso


II. ²

dormito sobre o cavalo
e a lua ao longe
é vapor do chá da manhã


III. ³

o macaco grita
mas que diria ele da criança
que é abandonada ao vento de outono?


IV. ⁴

se eu segurasse a caixa
os cabelos seriam lágrimas quentes
que passariam a geada de outono


V. ⁵

coberta de musgo
a sempre absorta hera
é uma oração budista


VI. ⁶

lua
e flores - 
os verdadeiros mestres







Matsuo Bashô (1644 - 1694)









(Tradução de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016).











(1) Este haiku, como era então habitual, vem originalmente precedido por um comentário escrito pela mão do autor. Tal gesto servia muitas vezes como um modo de melhor enquadrar o haiku antes de o apresentar ao leitor, oferecendo uma imagem geral das circunstâncias donde nasceu o momento em que o poema foi escrito. Ei-lo, então: «Choveu no dia em que saí para os campos; todas as montanhas estavam ocultas pelas nuvens.»


(2) Já este haiku traz consigo o seguinte comentário: «Deixei a hospedaria a meio da noite; quando a alvorada despontava, lembrei-me do poema "O Chicote Inclinado", de Tu Mu.» 
Acrescente-se que o poema a que Bashô se refere é datado do século IX e fala sobre uma situação em que o seu autor, tal como o mestre do haiku, cavalgava de noite e assim ia caindo no sono.


(3) Para além da conotação real do acontecimento, isto é, do escutar do grito do macaco, na poesia chinesa clássica tal som era associado a um sentimento de tristeza. Aqui relacionado com uma criança abandonada, adquire uma dimensão sentimental ainda mais cortante. 


(4) Antes deste haiku, Bashô escreveu o seguinte: «No início de setembro, regressei ao meu lugar de nascimento. Nada do que fora de minha mãe restava. A erva em frente da casa estava queimada pela geada. Tudo tinha mudado. O meu irmão e irmãs tinham o cabelo grisalho e rugas profundas na testa. Todos dizíamos: 'Temos sorte em estar vivos', e nada mais. O meu irmão mais velho abriu uma caixa e falou para mim: 'Vê o cabelo branco da mãe. Há muito que não nos visitavas. Esta caixa é como a caixa de jóias de Urashima Tarô. As tuas sobrancelhas tornaram-se brancas'. Ficámos comovidos por uns instantes, depois compus este poema.» 
Esclareça-se que Urashima Tarô é o protagonista duma história em que salva uma tartaruga das mãos de duas crianças que a queriam matar. Como recompensa, o simpático réptil guia o seu salvador até um palácio no fundo do mar. Muitos anos depois regressa a terra, trazendo apenas consigo uma caixa com recordações desse mágico lugar.


(5) Antes de se poder ler este haiku, Bashô deixa o apontamento: «Na sepultura de Tomonaga, província de Mino». 
Note-se que a hera é um símbolo da eterna recordação.


(6) Aqui, o autor esclarece: «Os três veneráveis anciãos possuíam o talento da elegância poética e expressaram os seus sentimentos em poemas de infinito valor. Aqueles que escutaram esses poemas manifestaram um crescente respeito pelos seus autores.»
Perante isto, torna-se óbvia a subversão de Bashô, ao aclamar a lua e as flores, no fundo todas as coisas naturais e simples, como «os verdadeiros mestres».









("Rosados e brancos rebentos de ameixieira ao luar", 
de Sō Shizan (1733–1805))