segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Quatro poemas de Du Fu


I. Luar nocturno

A lua de Fuzhou¹ está cheia, esta noite.
Sozinha no teu quarto a contemplas.
Em Chang'an² sofro pelos nossos filhos,
que sentem a falta do pai.
Consigo imaginar os seus caracóis húmidos
e os seus braços de jade frios como cristal.
Oh, quando estaremos juntos de novo?
- luar cintilante reflectido
em trilhos de lágrimas secas.


II. Anotando os meus pensamentos enquanto viajo de noite

Uma orla de finos juncos na brisa suave,
um grande barco sozinho na noite.
As estrelas suspensas sobre a árida terra,
a lua nascendo do rio Yangtze³.
Como escrever alguma vez me levaria à fama?
Desisti do meu cargo pela doença e idade.
Um errante solitário. Que sou senão
uma gaivota entre o céu e a terra?


III. Lua cheia

A lua solitária defronte da minha torre derrama-se;
o frio Jiang⁴ agita as cortinas da noite.
Inclinada sobre as vagas, o seu oiro não tem descanso;
cintilando na minha esteira, a sua seda suaviza-se.
Ainda não minguou - as montanhas vazias estão silentes;
permanece bem alto, e as constelações esmorecem.
No meu velho jardim, pinheiros e cássias florescem
- oferecendo um brilho puro por vários quilómetros. 


IV. Último dia de outono, ano de 767

O meu tempo de vagabundo tarda em findar,
o outono de pesares está a um crepúsculo de terminar.
Miasmas pairam pelos domínios do Mestre Kui⁵;
a geada permanece fina no palácio do Rei Chu⁶.
Em tons de esmeralda, ervas rivalizam com brumas veladas;
em tons de carmesim, flores suportam folhas geladas.
Ano após ano, uma ligeira sensação de queda agitada.
Nada é como era na minha velha casa.





Du Fu (712 - 770)









(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Dongbo (I), Bill Porter (II) e David McCraw (III e IV)).











(1) Fuzhou é uma cidade cuja fundação remonta ao século II a. C., embora só no século VI da nossa era tenha ficado sob administração chinesa. Situa-se a cerca de 40 km da costa, no delta do rio Min, e actualmente é a capital da província de Fujian. 

(2) Trata-se da cidade que por mais de dez dinastias foi a capital chinesa. Actualmente designada por Xian, chegou a ser a cidade mais populosa do mundo, um exemplo de riqueza e civismo - situada no fim da famosa rota da seda. 
Embora não fosse nativo de lá, Du Fu tinha fortes raízes familiares nessa cidade, sendo uma das suas predilecções. 

(3) Yangtzé, ou Rio Azul, é o maior rio da Ásia. Nasce numa região montanhosa do Tibete e percorre mais de 6000 km para desaguar no mar da China oriental. Foi neste rio, a bordo de um barco, que Du Fu faleceu. Tinha então 58 anos e um historial de imensas doenças debilitantes. 

(4) O antigo nome de um outro rio, presumivelmente o rio Wei, situado na província de Shaanxi. 

(5) É possível que se refira ao Kui da mitologia chinesa, um demónio das montanhas, de uma só perna, a quem se atribui a criação da música e da dança. Portanto, os domínios do mestre Kui seriam, assim, as montanhas onde ele mitologicamente habita - na altura da criação do poema cobertas de neblinas estranhas. 

(6) Decerto uma referência ao Estado de Chu, que se instaurou durante a dinastia Zhou e durou de 1030 a 223 a.C.. Talvez o poeta somente visse as ruínas de tal palácio, mas sabe-se que o poema foi escrito durante os quatro anos que passou em Fengjie, distrito de Chongquing, região essa que esteve no domínio do dito Estado - o que suporta a nossa suposição. Os invernos rigorosos do lugar, repletos de chuva e humidade, juntamente com as parcas condições de higiene e habitação, tornavam Fengjie, bem perto das famosas Três Gargantas, um local a evitar. 








(Fengjie, descendo o rio Yangtzé)








quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Seis Tanka de Izumi Shikibu (Parte I)


I.

Deitada e sozinha
de cabelo negro solto
e emaranhado,
sinto desejo daquele
que primeiro o veio tocar. ¹


II.

Vem já sem demora - 
assim que estas flores abrirem,
logo irão cair.
Esta vida é como o brilho
do orvalho sobre as flores. ²


III.

As Estrelas Tanabata³ - 
como eu invejo a certeza
do seu encontro anual;
neste mundo há uma mulher
que de amor nada prevê.


IV.

Consumi o corpo
a desejar o regresso
do que não voltou.
É agora um vale profundo
o que foi meu coração.


V.

De que vale gostar 
da vida na Primavera?
Suas flores só são 
as algemas que nos prendem
a este mundo daqui. ⁴


VI.

Ao passar dos anos
habituei-me à tristeza:
não houve uma Primavera
que eu não deixasse com pena,
junto com as suas flores. 





Izumi Shikibu (974? - 1034?) ⁵








(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das versões de Luísa Freire in "O Japão no Feminino, Volume I, Tanka - Séculos IX e XI", Assírio & Alvim, 2007)









(1) Poderá parecer estranho, por tão leve e inocente ser, mas a referência ao «cabelo negro solto / e emaranhado» constitui uma das primeiras indicações explícitas do corpo humano na poesia japonesa, até aí totalmente virada para as emoções e os contornos do mundo exterior. Por ser rara, há um atrevimento consciente e um indício de sensualidade na sua utilização.


(2) É comum na poesia de Shikibu encontrarmos referências ao pensamento budista. Esta, notando a efemeridade da vida material, que apenas deverá estimular um desapego às formas, é apenas mais um exemplo. Sublinhe-se, contudo, a subentendida urgência em viver e desfrutar de tudo aquilo que de duração é tão breve.


(3) Existe no Japão uma celebração com o mesmo nome. A Festa Tanabata celebra a poesia e o encontro dos amantes. Segundo uma velha lenda, é igualmente a noite em que no céu se juntam duas estrelas separadas por um castigo ancestral.


(4) É de novo visível os efeitos da filosofia budista, desta feita ao apontar os apegos materiais como prisões do mundano - o que impossibilitará o indivíduo de mergulhar em si mesmo e por si realizar a verdade que é. Existe neste tanka um distanciamento para com os fenómenos terrestres que lembra o papel de testemunha do mundo que é fomentado pela prática da meditação. Em todo o caso, não se exclui uma certa amargura do tom escolhido pela poetisa.


(5) Como outras mulheres de iguais períodos, e até mais remotos, não muito se sabe acerca da sua vida, havendo inclusive sérios desacordos sobre as datas de nascimento e morte, sendo apenas o mais consensual o número de anos que terá vivido: sessenta.
É claro que muito do que dizemos se deve à relativização da mulher e do seu papel na sociedade, mesmo que Shikibu tenha vivido no período Heian, um dos mais florescentes em termos artísticos. Um desses exemplos está no tipo de poemas exercido pelas mulheres, o Tanka, e na língua escolhida, o nativo japonês, já que era o chinês o dialecto de eleição dos letrados daquele tempo.
Shikibu foi filha do governador de Echizen e neta materna do governador de Etchu. É possível que por volta dos vinte anos tenha casado, sendo o seu marido, naturalmente, também um governador. E foi dele que obteve o seu primeiro nome, Izumi, pois correspondia à região que o esposo administrava. O seu complemento, Shikibu, surge graças à designação oficial do seu pai, "mestre de cerimónias". Ou seja, a mulher não possuía nome próprio em adulta, mas um conjunto composto pelos cargos do marido e do pai, o que indica bem o modo da sociedade nipónica de então a tratar. 
Shikibu teve uma filha que também viria a ser poetisa, mas protagonizaria um acto à época escandaloso: um divórcio pouco depois do nascimento da filha, tendo o marido falecido num curto período após o sucedido. Volta a casar, entra na corte e inicia o seu longo rol de paixões com que seria conhecida, algo que se reflecte naturalmente na poesia que ia compondo. Daqui se destaca um envolvimento com um enteado da imperatriz nipónica, Tametaka, a causa do seu segundo divórcio e o repúdio da família. Este depois viria a falecer e, mais tarde, irromperia um amor profundo pelo príncipe Atsumichi, irmão do anterior amante, que ficaria famoso para as gerações vindouras. Inclusive, em 2008 estreou em Génova uma peça de teatro retratando a imensa paixão entre o príncipe e a poetisa. Mas para grande desgosto seu Atsumichi viria a falecer com apenas vinte e sete anos. Durante esse período terá escrito mais de duzentos poemas.
Abandonou temporariamente a corte, mas voltaria pouco depois para retomar os seus famosos casos amorosos. Casaria de novo, agora com trinta e seis anos, e só então parte com o seu marido para a província, abandonando de vez as cortes imperiais.
Sabe-se ainda que assistiria à morte da sua filha. Terá falecido numa região campestre, provavelmente em maior isolamento. Apesar de toda a azáfama amorosa da sua vida, Shikibu era budista confessa, e até frequentava vários templos em regime de retiro. Não obstante o que se escreve, o certo é que perdurou na história como uma das mais talentosas poetisas japonesas de sempre, de estilo à época inovador e arrojado, bem servida de técnica e criatividade, o suficiente para justamente figurar entre os "Trinta e Seis Imortais da Poesia Medieval".








Izumi Shikibu por Komatsuken (Séc. XVIII)