quinta-feira, 31 de maio de 2018

Cinco tanka de Ono No Komachi


I.

O meu desejo de ti
é forte para contê-lo - 
assim ninguém vai culpar-me
se à noite for ter contigo
pela estrada de meus sonhos.


II.

As noites de Outono
têm fama de ser longas - 
nada mais fizemos
que olharmos um para o outro
e é madrugada já.


III.

Hoje de manhã
até minhas campainhas
estão escondidas
para evitarem mostrar
o cabelo em desalinho.


IV.

As cigarras cantam
à hora crepuscular
na aldeia do monte - 
esta noite ninguém vem,
excepto o vento, visitar-me.


V.

Não há como vê-lo
nesta noite sem luar - 
estou deitada e desperta,
os seios ardendo em desejo
e o coração em chamas.




Ono No Komachi (834? - ?) (*)





(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das versões de Luísa Freire in "O Japão no Feminino, Volume I, Tanka - Séculos IX e XI", Assírio & Alvim, 2007)






(*) Pouco se sabe sobre esta poetisa de grande excelência, uma das primeiras mulheres a atingir uma notável notoriedade na prática do ofício.
Terá nascido no século IX, isso é certo. Alguns estudiosos indicam o ano de 834, outros o de 825 - provavelmente na província de Akita, filha de um lorde local. Seja como for, viveu no florescimento do período Heian (794 - 1185), uma época nobre para as artes no Japão, onde as mulheres desempenharam um papel crucial na fixação do japonês como língua poética - recorde-se que então o chinês era o idioma utilizado na criação poética, dado que o japoneses receberam desse povo a herança do seu exercício. Assim, como muitas outras, Komachi desenvolveu o estilo Tanka, tornando-se uma das maiores representantes da poesia de corte. Note-se aqui que era um tempo não de escritores isolados, isto é, habitualmente não se era escritor por desejo ou convicção, pois a escrita, nomeadamente o exercício poético, era uma prática corrente de quem habitava a corte.
Komachi terá, por isso, servido na corte imperial, provavelmente por cerca de cinco décadas. Há quem aponte que possa ter sido uma das esposas do imperador Nimmyo (833 - 850), embora não gozasse de grande estatuto junto dele, ou apenas uma frequentadora recorrente dos seus aposentos. Terá tido um filho ou filha, mas foi essencialmente pelo seu trabalho poético que granjeou grande prestígio, embora se julgue que tenha sido uma mulher extremamente bela e atraente, apesar de inconstante nas suas incontáveis paixões - como muitos dos seus poemas o comprovam. 
A sua poesia versou sempre sobre temas amorosos, com especial enfoque no desejo, na solidão e na passagem do tempo, ainda que de quando em vez atravessada por claras influências budistas. O arranjo dos seus trabalhos era impecável, pelo que facilmente se identifica, apesar de subjectivo, a beleza, a delicadeza e a intensidade de sentido dos seus trabalhos.
Após terminar o serviço na corte, Komachi ter-se-á isolado nas montanhas, vivendo o resto dos seus dias escrevendo na solidão do seu retiro - a típica austeridade de um caminho de cariz de budista. 
Há quem aponte o ano 900 como o da sua morte, mas dada a enorme incerteza na data optou-se por não incluí-la na apresentação da autora. Certo é que logo após a sua morte tinha início a lenda de Komachi, bem mais conhecida do que a sua vida real, e que vigora até aos dias de hoje. 






(Ono No Komachi, por Kikushi Yosai (1781 - 1878))



terça-feira, 8 de maio de 2018

SEIS MEMÓRIAS EM QUATRO POEMAS


I.

Lembro quando ela chega,
cintilante subindo as escadas,
com pressa de acabar a nossa separação.
Sem nunca estar saciada, falamos e os pensamentos
partilhamos; olhando um no outro, nunca basta;
mas nessa contemplação toda a fome é esquecida.


II.

Lembro quando ela se senta,
tão sóbria, tão decente diante de elegantes cortinas;
de quando em vez entoando quatro ou cinco canções,
outras vezes dedilhando duas ou três cordas.
Quando sorri, fá-lo além de qualquer comparação;
quando o rosto se entristece, que coração se não quebra?


III.

Lembro quando ela come,
a expressão do seu semblante à chegada dos pratos;
quer sentar-se, mas é demasiado tímida para tal,
quer comer, mas é demasiado envergonhada para começar;
mordiscando a comida, apenas, como se não tivesse fome,
erguendo a sua malga como se as forças lhe faltassem.


IV.

Lembro quando ela dorme,
tentando permanecer acordada enquanto outros dormitam,
desenlaçando o seu vestido sem que ninguém o peça,
repousando na almofada à espera de carícias,
e ainda assim temendo o olhar do homem ao seu lado,
deliciosamente corando de vergonha à luz do candeeiro.




Shen Yue (441 - 513) (*)







(Versões de Pedro Belo Clara).








(*) Shen Yue, nascido em Huzhou, província de Zhejiang, além de proeminente poeta, foi um conhecido historiador e homem de estado, tendo servido imperadores das dinastias Liu Song, Qi do Sul e Liang. 
O período em que viveu, importa aqui realçar, é por vezes conhecido como "Seis Dinastias", estendendo-se de 220 a 589 d.C.. Contudo, certos historiadores apreciam a subdivisão temporal desta era e, assim, descobre-se que o poeta viveu no período conhecido por "Dinastias do Norte e do Sul" (420 - 589), onde se contam, entre outras, as três que em vida serviu. Ressalve-se que o referido tempo foi assolado por uma guerra civil e um caos político tremendo, embora tenha se distinguido, curiosamente, por um ímpar florescimento das artes e da tecnologia e uma expansão de novos ideais religiosos. 
Acima de tudo, Shen Yue é conhecido por ser o autor do "Livro dos Song" (Song Shu), um valioso documento que relata a história da dinastia Liu Song, mas destacou-se igualmente pela inovadora aplicação das eufonias tonais (uso de palavras agradavelmente musicais, em rima ou não), no ensino das artes musicais e na elaboração de ensaios variados.
Do ponto de vista poético, Yue também foi pioneiro na forma de construção de um poema, tendo lançado as bases daquela que mais tarde viria a ser a poesia clássica chinesa. Sublinhe-se também que, por sua mão, começou por se imprimir à poesia um carácter levemente erótico, algo até então nunca tentado. O último dos quatro poemas aqui mudados para o português é um exemplo disso mesmo. A nota não é explícita, como se vê, mas implícita em poucas palavras, deixando o resto à imaginação do leitor.
Resta acrescentar que este conjunto de poemas foi criado em honra da amada do poeta, aqui dada a conhecer através de um processo evocativo onde até se vislumbram algumas das regras da época e do dia-a-dia das gentes com maiores posses. Apesar de serem quatro os poemas, eles espelham seis memórias, cada uma referente a seis alturas distintas do dia: quando a amada chega, quando se senta para se dedicar a uma actividade musical, quando ri, quando se entristece, quando chega a refeição e quando à noite se deita junto do seu esposo.