quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O conselho de Rumi


O ser humano é uma casa de hóspedes
Cada manhã há recém-chegados:
Alegria, tristeza, maldade
Cada um deles é um visitante inesperado.

Acolhe-os e atende todos
Ainda que sejam só desgostos
E arrasem violentamente
Os móveis de tua casa
Ainda assim, trata-os a todos com respeito
Pode ser que te estejam limpando o horizonte
Para um novo deleite.

Aos pensamentos escabrosos, à vergonha, à malícia
Recebe-os a todos com um sorriso à porta
E convida-os a passar.

Dá graças a quem quer que chegue
Porque todos foram enviados
De longe, como guias.






Rumi (1207 - 1273)






(Tradução de Manuel Silva-Terra in "O círculo do amor", Ed. Licorne, 2016)


















domingo, 19 de novembro de 2017

CANÇÃO XVII (em excerto)


Observa o magnífico repouso
que reside no espírito supremo.
Dele desfruta quem por ele
se dá a conhecer.

Amparado pelos cordões do amor
ondula o oceano da alegria,
e um poderoso som 
irrompe em canção.

Observa o lótus que aí floresce 
sem água. Kabir afirma: 
A abelha do meu coração 
bebe desse néctar.


✻✻✻


Quão maravilhoso é o lótus, 
esse que floresce no coração 
da universal roda de fiar.
Apenas algumas almas puras 
conhecem o seu real deleite.

Há música em seu redor,
e aí o coração compartilha
da alegria do mar sem fim.

Kabir afirma: Mergulha 
nesse oceano de ternura,
e assim permite que todos
os erros da vida e da morte
possam desaparecer.





Kabir (1440 - 1518)





(Versões de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa de Rabindranath Tagore - "Songs of Kabir", 1915).










sábado, 4 de novembro de 2017

Quatro poemas de amor místico de Rumi


I.

Vem e entra neste círculo
O círculo dos amantes
Anda, vamos atirar-te
Para dentro do jardim do amor.

Sim, tu és água, água que corre
E se deixa represar
Vem, entra em nós
Nós somos a corrente que tudo arrasta.

Vem, andamos todos perdidos
Na maior pobreza
E não sabemos cantar
Se não a canção da ignorância.


II.

O meu coração traz a tua marca
Não anda por aí perdido
Sem os outros, tudo acontece
Sem ti, nada pode acontecer.

Tu, meu vinho, meu desvario
Meu jardim, minha primavera
Meu sono, meu repouso
Sem ti, nada acontece.

Se tu és a cabeça
Eu devo ser o passo
Tu partes, eu nada sou
Sem ti nada acontece. 


III.

Eu estava morto, eis-me vivo
Era lágrima, eis-me riso
Chega a felicidade do amor
Felicidade eterna eu sou.

Ele diz-me: és uma vela
Para quem a assembleia ora
Assembleia não sou, nem vela
Fumo disperso, sim.

Tu és a fonte da luz
Eu sou a sombra do salgueiro
Atinges-me na cabeça
Em fogo, na miséria, aqui me tens. 


IV.

Não sou nem cristão, nem judeu, nem muçulmano
Nem hindu, nem budista, nem sufi, nem zen
Não pertenço a qualquer religião ou cultura
Não sou dono do oeste, não nasci no mar, nem na terra.

Nem natural, nem etéreo
Nem composto por qualquer um dos elementos
Não existo, não sou uma entidade deste mundo
Nem do próximo.

Não descendo de Adão e Eva
Nem de qualquer outra história sobre as origens
O meu lugar não existe
O meu ser não tem corpo nem alma.

Primeiro, último
Interior, exterior
Só alento
Que respira existência humana.



Rumi (1207 - 1273) ¹





(Tradução de Manuel Silva-Terra in "O círculo do amor", Ed. Licorne, 2016)






(1) Djalal al-Din nasceu em Balkh, o principal centro cultural do antigo império persa, uma localidade que actualmente pertence ao Afeganistão. 
Por ocasião das invasões mongóis no território, entre 1215 e 1220, o jovem Djalal e a sua família viram-se forçados a encontrar refúgio na Turquia, à época uma região do império bizantino. Sem que o soubesse, tal evento estaria na origem da alcunha que faria esquecer o seu nome baptismal, pois Rumi, a nomenclatura que o imortalizou, significa "proveniente da Anatólia romana". 
Dedicou-se com afinco nos anos vindouros ao universo académico, tendo sido professor, teólogo e jurista. Era por muitos considerado um mestre sufi (sufismo, a "pérola do Islão"), papel que hoje em dia ainda erroneamente se lhe atribui (chamamos a atenção para o que se escreve no poema IV), embora na sua juventude tenha estudado e seguido as práticas desse ramo do islamismo.  
Não obstante a sincera preocupação que Rumi nutria para com o ensino (já o seu pai fora conhecido por "sultão dos escolásticos"), encontrou-se a dado momento numa posição de obstinada insatisfação relativamente aos dogmas das doutrinas pré-estabelecidas. Desfrutava da vida de um académico abastado, mas os seus dias eram enfadonhamente letárgicos. 
Em 1244 dá-se um encontro que lhe mudaria totalmente a existência, acendendo luzes onde até então só uma negra noite subsistia. Conheceu Shams de Tabriz, um derviche (espécie de asceta) errante, que despertou em seu âmago a centelha que até aí havia permanecido adormecida. Os quatro poemas que aqui se reproduzem terão sido escritos, segundo a lenda, após o encontro com o solitário viajante. 
Rumi abandonou por completo o seu estilo de vida anterior. Centrou-se na música, poesia e dança como formas de abandonar o ego que vive em cada Homem e, assim, conseguir a união ao Todo, ao Divino que também reside em cada um. Trata-se da fana, a base de todas as acções dos grupos derviche: anulação do eu individual e consequente fusão no Divino, como uma gota de água que se permite tombar na imensidão dum oceano sem fim. 
A sua dança (dhikr), que consiste em rodar num eixo imaginário por vezes sem conta, tornou-se famosa e ainda hoje é reproduzida em diversas cerimónias. Consta que foi através dela que Rumi se tornou iluminado.  
Abordando o encontro que lhe fez despegar da aridez da razão em prol da fertilidade do coração, Rumi escreveu:

Durante anos procurei com os sentidos
Agora não
Não estou em algum lugar em particular
Não sei dizer o que procuro
Tudo o que Shams dava o podes receber de mim. 

Faleceu em 1273 em Konya, na Turquia, onde está sepultado. O seu túmulo é ainda motivo de diversas peregrinações e visitas turísticas. 








(Rumi, 1207 - 1273)