quinta-feira, 14 de julho de 2022

OS DOIS ANÉIS



Havia um homem que tinha dois filhos. Faleceu e, entre os seus bens, deixou dois anéis. Um deles tinha um enorme diamante incrustado, enquanto o outro, mais simples, era feito de prata. O irmão mais velho, avaro, assim que viu os anéis disse: 

«Como sou o irmão mais velho, é óbvio que o nosso pai deixou o anel com o diamante para mim. Corresponde-me justamente.» 

O irmão mais novo respondeu: 

«Tudo bem, que seja para ti. Eu conformo-me com o anel de prata.»

Cada irmão pôs o respectivo anel no dedo e foi viver a sua vida em separado. Dias depois, o irmão mais novo encontrava-se sozinho, entretido a brincar com o anel, quando, de repente, algo no seu interior chamou a sua atenção. Examinou de perto o anel e deparou-se com a seguinte inscrição: «Também isto passará.»

Sem dar, no momento, muita importância ao achado, disse para si mesmo: «este devia ser o mantra¹ do meu pai, daí que o tenha mandado gravar no interior do seu anel.»

Como sempre acontece, o tempo não abrandou o passo. A vida seguiu o seu curso para ambos os irmãos: vieram os bons tempos e os maus tempos, a fortuna e o infortúnio, as situações favoráveis e desfavoráveis, o prazer e a dor.

O irmão mais velho, perante as vicissitudes e as mudanças da vida, começou a desequilibrar-se. Exaltava-se de mais com as situações que se desenrolavam a favor dos seus desejos e fraquejava diante daquelas que contrariavam as suas vontades. Ficava muito alterado à mínima coisa, de tal forma que começou a procurar refúgio nos vícios que então desenvolvera. O efeito inebriante que lhe concediam era o único modo de suportar a desarrumação da mente e o seu coração inquieto. De que lhe tinha servido, afinal, vender o fabuloso diamante do anel que recebera em herança? Toda a fortuna que então granjeara?

Naturalmente, também o irmão mais novo se viu sujeito às vicissitudes da vida. Querendo ou não, fora, como qualquer Homem que viva, obrigado a enfrentar bons e maus momentos, circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, alegrias e tristezas. Mas as palavras inscritas no interior do anel que recebera do pai não lhe saíam da cabeça. Palavras simples, mas plenas de significado, que vinham sempre em seu auxílio nos tempos mais turbulentos, ajudando-o a permanecer firme na adversidade, certo de que esta acabaria por passar. Com o tempo, não mais se permitiu arrastar nem para estados de exaltação nem de depressão, pois havia compreendido a transitoriedade de tudo, a efemeridade do mundo material.

Que maravilhosa herança recebera. Assim, permaneceu em paz consigo mesmo e em harmonia com o fluir de todos os acontecimentos, sem apego ao prazer nem ódio à dor. Afinal, fosse quem fosse a assumir o trono da existência… sabia que tal reinado não duraria mais que um breve momento, que também ele haveria de passar.




Anónimo.








(Adaptação de Pedro Belo Clara do texto recolhido por Ramiro Calle e antologiado em "Os Melhores Contos Espirituais do Oriente" - A Esfera dos Livros, 4ª ed., setembro de 2010. A sua tradução portuguesa é de Margarida Cardoso de Meneses.)












(1) Expressão com origem no sânscrito, significando "controlo da mente". São, geralmente,  orações ditas ou cantadas de modo repetido, com o intuito de induzir estados de meditação e de calma interior, já que facilitam a concentração, mas poderá ser apenas uma palavra ou até uma sílaba, repetida várias vezes, em fala ou em canto. 













(Fonte: albertsjewelers.com)



sábado, 21 de maio de 2022

A HISTÓRIA DAS BORBOLETAS


Certa noite, as borboletas reuniram-se, atormentadas pelo desejo de se juntaram à vela. Disseram:

- Precisamos de mandar alguém à procura de informações sobre o objecto da nossa busca amorosa.

Em vista disto, uma delas partiu. Chegou a um castelo e, dentro dele, viu a luz de uma vela. Regressou e relatou, segundo a sua compreensão, tudo que vira. Mas, no entender da sábia borboleta que presidia à reunião, ela não percebera coisa alguma da vela. Assim sendo, outra mariposa seguiu o caminho do castelo. Fez tenção de tocar a chama com a ponta das asas, mas o calor fê-la recuar. Como o seu relatório não fosse mais satisfatório do que o da primeira, partiu uma terceira borboleta. Esta, bêbada de amor, atirou-se à chama; envolveu-a com as patas dianteiras e uniu-se alegremente a ela. Abraçou-a toda, e o seu corpo ficou vermelho como o fogo. A borboleta sábia, que observava a cena de longe, ao ver que a chama e a mariposa pareciam uma só, disse:

- Ela aprendeu o que desejava saber; mas só ela compreende, e nada mais se pode dizer. 



Farid Ud-Din Attar (1121? - 1229?) ¹







(Tradução de António Machado in "A Conferência dos Pássaros", Marcador, 2013.)










(1) Attar, de cuja vida pouco se sabe, terá nascido na cidade de Nishapur, no actual Islão, segundo algumas fontes em 1121, segundo outras em 1145. 
Foi um célebre Sufi poeta e biógrafo, além de farmacêutico. Ao abandonar essa profissão inicial, Attar viajou por diversas cidades e países, estudando o máximo possível em diferentes paragens. Terá sido durante esse período de busca que teve um encontro mais real e profundo com o sufismo. Quando regressou, já apregoava os seus preceitos. Apesar dos dados escassos e por vezes contraditórios, isto é certo: o seu trabalho exerceu uma influência tremenda na poesia persa e até no Sufismo em geral, onde hoje é visto como um dos seus maiores nomes. 
No entanto, em vida permaneceu discreto e sem grande influência na sociedade da época, além de na sua terra natal. Somente muito mais tarde, provavelmente no século XV, é que os seus dotes poéticos e prosaicos foram redescobertos e amplamente divulgados. O célebre poeta Rumi foi um dos seus maiores admiradores. 
A obra "A Conferência dos Pássaros" é sem dúvida alguma um dos seus trabalhos mais reconhecidos. 
Teria setenta e quatro ou setenta e cinco anos quando se dá a invasão mongol da cidade de Nishapur, em 1221. Attar é morto durante o impiedoso massacre. 
Actualmente, é possível visitar o seu mausoléu na dita cidade, um autêntico momento a um poeta e homem religioso ímpar. 










(Farid Attar,
autor desconhecido.)




sexta-feira, 15 de abril de 2022

A CHAVE DA FELICIDADE


Deus sentia-se muito só. Para superar a sua solidão, tinha criado uns seres que lhe faziam companhia. Mas esses seres sobrenaturais encontraram a chave da felicidade e fundiram-se com o Divino, que voltou a ficar só e sumido no seu triste sentimento de solidão. 

Reflectiu demoradamente. Era Deus, mas não queria estar sozinho. Pensou que tinha chegado o momento de criar o ser humano, mas intuiu que este poderia encontrar a chave da felicidade, que descobriria o caminho até Ele e com Ele se fundiria. Não, não queria ficar só outra vez. 

Perdurou no seu pensamento e perguntou-se onde poderia esconder a chave da felicidade para que o Homem não a  pudesse encontrar. Não era fácil. Primeiro pensou ocultá-la no fundo do oceano, depois numa caverna nos Himalaias, depois noutra galáxia. Mas estes lugares não o satisfaziam. 

Passou a noite em claro, perguntando-se onde seria o lugar mais seguro para esconder a chave da felicidade. Sabia que o ser humano acabaria por descer ao oceano mais abismal e que a chave não estaria segura aí. Também não estaria segura numa gruta dos Himalaias porque, mais cedo ou mais tarde, o Homem escalaria até aos cumes mais elevados e encontrá-la-ia. Nem sequer estaria segura noutra galáxia, já que o Homem chegaria a explorar os vastos universos. 

Ao amanhecer, continuava a perguntar-se onde ocultá-la. E quando o sol começava a desvanecer a bruma matutina com os seus raios, de súbito ocorreu-lhe um lugar no qual o ser humano nunca procuraria a chave da felicidade: dentro de si mesmo. Criou então o Homem e, no seu interior, colocou a preciosa chave. 





Anónimo.











(Texto recolhido por Ramiro Calle e antologiado em "Os Melhores Contos Espirituais do Oriente" - A Esfera dos Livros, 4ª ed., setembro de 2010. Tradução de Margarida Cardoso de Meneses.)










"The Light Within",
de Annette Trent.


quarta-feira, 9 de março de 2022

Oito poemas (Tanka) de Wakayama Bokusui


I.

Vamos sem demora; anseio por montanhas
que os nossos olhos não tocaram ainda.
Será que não se oculta em teu peito
esta paixão que aguda me corrói?


II.

As cerejeiras florescem sob a melancolia
dos pálidos céus de começo de verão;
mas quão terríveis parecem ser,
desde que a morte cerrou os olhos do meu amigo!
¹


III.

Encontrarei, pensara, alguma paz de espírito
respirando os ares do oceano.
Então, desejoso de mar, aqui cheguei
– mas o que busco está ainda por descobrir.


IV.

Corram, lágrimas, corram à vontade:
o mastro é um biombo
- claras nuvens brilham, no alto,
e as ondas do mar cintilam.


V.

O bosque está sereno, nenhum pássaro
nesta solidão profunda se faz ouvir,
enquanto debaixo duma árvore me quedo,
escutando o solitário suspiro do outono.


VI.

Sentindo-me desamparado,
penso que cada poema, cada canção minha
é um triste rastro deixado por meus pés
ao longo da praia da vida.


VII.

Oh, quão desesperante e terrível é
viver a minha vida sobre a terra!
Caminho tacteando na escuridão
que nenhum raio de luz toca.


VIII.

Estou cansado da medicina,
apenas espero e anseio por sake².
Esquecendo-me de tudo,
numa taça cheia desejo morrer.




Wakayama Bokusui (1885 - 1928)










(Versões de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de H. H. Honda in "The Poetry Of Wakayama Bokusui", The Hokuseido Press, Japão - edição fac-símile elaborada pela Hassell Street Press.)













(1) O amigo a que Bokusui se refere é Ishikawa Takuboku, também ele um poeta, falecido em 1912, vítima de tuberculose - quando contava apenas 32 anos de idade. Tal como Bokusui, compunha poemas no estilo "Tanka", um género que então vivia o tempo duma reformulação significativa. Tornar-se-iam ambos, com o passar dos anos, membros de pleno direito do restrito panteão dos intérpretes mais importantes do género. 



(2) Bebida alcoólica japonesa feita a partir da fermentação do arroz, após passar por um processo de remoção de óleos e proteínas naturais. Tradicionalmente, bebe-se à temperatura de 35º C, embora não de modo exclusivo, já que consoante as temperaturas em que for consumido o sake adquire diferentes sabores.
Acrescente-se que na versão inglesa do poema optou-se por usar a palavra "wine", isto é, "vinho", ao invés de manter a original. É certo que o sake é uma espécie de vinho de arroz, mas, para o efeito, e também por já não ser uma referência tão estranha entre nós, decidimo-nos pelo termo original.











(Wakayama Bokusui)



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

UM POEMA PARA OS MEUS, NA VELHICE (o último poema de Bai Juyi)

 
Setenta e cinco anos de idade,
cinquenta mil moedas para gastar. 
Minha esposa envelhecendo comigo,
os sobrinhos cirandando aqui à volta,
alimento-me de sopa de aveia, de arroz tenro.
A minha cabaia com um forro novo.
Nesta casa simples, a sorte de estar junto dos meus.
Colocaram meu leito diante de um painel de montanhas e nuvens,
o fogãozinho ao lado dos cortinados azuis.
Meu neto lê um livro para mim,
os cozinheiros afadigam-se, fazem o jantar.
Escrevo poesia, respondo aos amigos,
entretenho-me a coser roupa,
escolho e preparo ervas medicinais.
Terminadas todas as pequenas tarefas,
adormeço de rosto voltado para o sol.






Bai Juyi (772 – 846)












(Tradução de António Graça de Abreu in "Poemas de Bai Juyi", Instituto Cultural de Macau, 1991.)














"Velho com Criança",
de Xu Yan (1956 - )




sábado, 15 de janeiro de 2022

Três breves poemas de Li Bai

 
I. O pescador

A terra bebeu a neve,
as ameixeiras estão de novo em flor; 
as folhas novas do salgueiro doiradas ardem,
as águas do rio são prata.
Salpicadas de oiro, as borboletas
com suas bocas de veludo tocam o coração das flores.

Num barco parado,
o pescador puxa a sua rede prateada,
agitando as águas quietas. 

Pensa numa rapariga, em casa,
como andorinha no aconchego do ninho;
pensa na rapariga que, em casa,
como a andorinha espera o seu companheiro. 


II. Diz a rapariga de Ba¹

As águas do rio Ba são velozes como uma seta; 
o barco no rio desliza
como se asas tivesse. 
Em dez dias percorrerá três mil Li.²

E tu partes, amor.
Ah, quantos anos até ao teu regresso? 


III. A mulher de Yue³ (IVº poema duma série de V)

Ela, uma rapariga de Dongyang, está descalça na margem;
ele, um barqueiro de Kuaiji, permanece no seu barco.
A lua brilha ainda no céu. 
Olham um para o outro - de coração partido. 




Li Bai (701 - 762)








(Versões de Pedro Belo Clara a partir de:
I - tradução de R. T. Smith, revista Shenandoah (blogue), Fev. 2012;
II e III - tradução de Shigeyoshi Obata, em "The Works of Li Po", Tóquio, 1935.)







(1) Ba é a região mais oriental da província de Sichuan, atravessada pelas velozes águas do rio Yangtze, o maior de toda a Ásia.

(2) Antiga medida chinesa de distâncias. O valor não é muito exacto e tem variado ao longo do tempo, mas actualmente equivale a quinhentos metros.  

(3) Um estado da China antiga, correspondente à área onde hoje se encontram três províncias daquele país: Zhejiang, Xangai e Jiangsu. Quando Li Bai era vivo, tal estado era já considerado um vassalo da China imperial. 

(4) Cidade que nos dias de hoje pertence à província de Zhejiang, na zona oriental costeira da China.

(5) Localidade da mesma província, actualmente designada de Shaoxing. 












"Chinese fisherman with commarant"
de Lynn B. Blair