sexta-feira, 1 de março de 2024

O TOLO

 

Por natureza, a minha mente é vazia.
Mesmo dormindo, permaneço desperto.
Penso em coisas sem pensar.
Todas as impressões que tinha do mundo
Dissolveram-se.

Os meus desejos desapareceram.
Que me importa o dinheiro,
Os sentidos – esses ladrões –
Ou amizades, conhecimento, os livros sagrados?

Libertação,
Apego,
O que são para mim?
Que me importa a liberdade?
Conheci Deus,
O Eu infinito,
A testemunha de todas as coisas.

Por fora, um tolo;
Por dentro, livre de pensamentos.
Faço o que bem entendo,
E apenas aqueles como eu
Compreendem meus modos.





Ashtavakra (? - ?)














(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











"Gaura Nitai", 
de Syamarani Dasi



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

FELICIDADE



Mesmo que nada tenhas,
É difícil descobrir o contentamento
Que advém da renúncia.
Eu nada aceito,
Eu nada rejeito
E sou feliz.

O corpo estremece,
A língua hesita,
A mente está cansada.
Abandonando-os,
Persigo alegremente o meu propósito.

Sabendo que nada faço,
Faz-se o que tiver de ser feito,
E sou feliz.

Apegado ao seu corpo,
Aquele que busca insiste em esforçar-se
Ou sentar-se muito quieto.
Mas eu não mais suponho
Que seja meu o corpo,
Ou que não o seja.
E sou feliz.

Dormindo, sentado, caminhando
Nada de bom ou mau me acontece.
Durmo, sento-me, caminho
E sou feliz.

Em esforço ou em repouso,
Nada é ganho ou perdido.
Abandonei a alegria de ganhar
E a tristeza de perder.
E sou feliz.

Os prazeres vêm e vão.
Quantas vezes observei a sua inconstância!
Abandonei o bom e o mau,
E agora sou feliz.





Ashtavakra (? - ?)















(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)












("Tree of Happiness", por Leon Devenice)






quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

REALIZAÇÃO


Primeiro, abdiquei da acção;
Depois, das palavras vãs;
Por fim, do pensamento.
Agora, estou aqui.

Libertando a mente de distrações,
E só nisso concentrado,
Apaguei sons e todos os sentidos,
E estou aqui.

A meditação é necessária
Apenas quando a mente se distrai
Na falsa imaginação.
Sabendo disto,
Eu estou aqui.

Sem alegria ou tristeza,
A nada me apegando e nada rejeitando,
Oh, Mestre, eu estou aqui.

Que me importa
Se observo ou negligencio
As quatro fases da vida¹?
A meditação,
O controlo da mente,
Não passam de meras distrações!
Agora, eu estou aqui.

O fazer e o não fazer
Despontam da ignorância.
Compreendendo isto profundamente,
Eu estou aqui.

Pensar no que reside
Além do pensamento
É ainda um pensamento.
De pensar eu desisti,
Eu estou aqui.

Quem realizar esta verdade
Realiza a sua própria natureza
E torna-se, em verdade, realizado.





Ashtavakra (? - ?)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(1) Nas antigas tradições orientais, as quatro fases da vida dum indivíduo, asrama, eram as seguintes: juventude e instrução, cuidar do lar, retiro na floresta e renúncia. 













(Autora: Swati Pasari)






quinta-feira, 2 de novembro de 2023

SERENIDADE


Todas as coisas nascem,
Modificam-se
E morrem.
É esta a sua natureza.

Quando sabes que assim é,
Nada te perturba,
Nada te magoa.
Tornas-te sereno.
É fácil.

Deus criou todas as coisas;
Nada mais há se não Deus.
Quando sabes que assim é,
O desejo desaparece.
A nada apegado,
Tornas-te sereno.

Mais cedo ou mais tarde,
A sorte ou o infortúnio
Poderão cair sobre ti.
Quando sabes que assim é,
Nada desejas,
Nada lamentas.
Subjugando os sentidos,
És feliz.

O que quer que faças
Gera alegria ou tristeza,
Vida ou morte.
Quando sabes que assim é,
Podes agir livremente,
Sem apego.
O que haverá para alcançar?

Toda a tristeza provém do medo,
E de mais lado nenhum.
Quando sabes que assim é,
Dela te libertas,
E o desejo desaparece.
Tornas-te feliz
E sereno.

“Eu não sou o corpo,
Nem é o corpo meu.
Sou consciência em si.”
Quando sabes que assim é,
Não guardas registo
Do que fizeste
Ou deixaste por fazer.
Tornas-te um,
Perfeito e indivisível.

“Estou em todas as coisas,
De Brahma¹ a um filamento de erva.”
Quando sabes que assim é,
Não tens um pensamento
Para o sucesso ou o fracasso
Ou para a inconstância da mente.
És puro,
És sereno.

O mundo, e todas as suas maravilhas,
Nada é.
Quando compreendes isto,
O desejo desvanece,
Pois és consciência em si.
Quando sabes, no teu coração,
Que nada há,
És serenidade.







Ashtavakra (? - ?)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(1) Brahma é o primeiro deus da sagrada trindade do hinduísmo, a Trimurti, seguido de Vishnu e Shiva. Originalmente dotado de cinco cabeças e oito braços, representa a força criadora do Universo. À semelhança da noção católica de "Deus", Brahma é visto como o "Criador" por excelência, senhor de todo o conhecimento. Uma das possíveis traduções do seu nome é "Realidade Última", embora sobre este tema as opiniões sejam bastante divergentes.
Iconograficamente é representado por quatro cabeças, uma por cada Veda (os livros sagrados do hinduísmo), e em quatro dos seus oito braços ampara um rosário, simbolizando o tempo, um recipiente com água, uma espécie de colher e os sagrados textos dos Vedas.
Apesar de num passado remoto ter gozado de uma enorme popularidade, com o dobrar dos séculos foi perdendo-a para as outras divindades da mesma trindade. Restam actualmente poucos templos em sua honra. O mais emblemático situa-se em Pushkar. 










“Evening Stillness", John Kenward




quinta-feira, 12 de outubro de 2023

DESEJO



Esforço e anseio
Na conquista de prazer e prosperidade:
São estes os teus inimigos,
Surgindo para arruinar
As presunções da virtude.

Deixa tudo ir.
A nada te apegues.

Toda a boa fortuna,
Esposas, amigos, casas, terras,
Todas essas dádivas e riquezas,
Não passam dum sonho,
Uma actuação de malabarismo,
Um espectáculo itinerante!
Em poucos dias terão desaparecido.

Reflecte.
Onde houver desejo
O mundo estará lá.
Com desapego, mas resoluto,
Liberta-te do desejo
E encontra a felicidade.

O desejo aprisiona-te,
Nada mais.
Erradica-o, e serás livre.
Abandona o mundo.
Realiza-te
E encontra a felicidade eterna.

És um.
És consciência pura.
O mundo não é real.
É um lugar frio e sem vida.
Nem real é a ignorância.
Então, o que poderás desejar saber?

Vida após vida tens-te entregado
A diferentes formas,
A diferentes prazeres,
Filhos e reinos e esposas.
Apenas para os perder a todos…

Chega de perseguir o prazer,
Chega de abastança e acções nobres!
Na negra floresta do mundo
Que paz poderão conceder-te?

Como tens labutado,
Vida após vida,
Obrigando o teu corpo, a tua mente
E as tuas palavras a um trabalho doloroso...
É tempo de parar.

Agora!








Ashtavakra (? - ?)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)















"Liberdad"
de Maria del Carmen Perez




quinta-feira, 14 de setembro de 2023

DESAPEGO

 

Cuidar disto,
Negligenciar aquilo,
Colocar uma coisa contra a outra.
Quem está livre de tais preocupações?
Quando irão acabar?
Reflecte.
Sem paixão,
Sem apego,
Deixa tudo ir.

Meu Filho:
Quão raro e abençoado é aquele
Que observa os modos do Homem
E abdica do desejo
De prazer e conhecimento
Em troca da vida em si.

Nada dura.
Nada é real.
É tudo sofrimento,
Aflições a triplicar!
Mais desprezível que o desprezo.
Reconhece esta verdade.
Abdica.
Permanece sereno.

Quando terminarão os Homens
De colocar uma coisa contra a outra?
Abre mão de todos os opostos.
O que quer que venha, sê feliz
E assim realiza-te.

Mestres, santos, buscadores da verdade:
Todos dizem coisas diferentes.
Quem o souber
Torna-se sereno sem o fardo das emoções.

O verdadeiro mestre observa com exactidão.
A nada se apegando,
Ele vê que todas as coisas são uma só.
Ele chega ao entendimento
Da natureza das coisas,
A essência da consciência.
Ele não voltará a nascer.

Nos elementos mutáveis,
Vê apenas a sua forma pura.
Repousa na tua própria natureza.
Liberta-te.

O mundo não passa dum conjunto de falsas impressões.
Desiste delas.
Desiste da ilusão,
Desiste do mundo.
E livre vive.





Ashtavakra (? - ?)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)












(Sem nome,
por Danny Campbell)


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A MENTE



A mente deseja isto
E lamenta-se por aquilo.
Abraça uma coisa
E rejeita outra.
Agora sente raiva,
Agora felicidade.
Deste modo estarás preso. 
 
Mas quando a mente nada deseja
E por nada se lamenta,
Quando está sem alegria ou raiva
E, a nada se apegando,
Nada recusa…
Então, és livre. 
 
Quando a mente é atraída
Para algo que pressente,
Ficas preso.
Quando não existe atracção,
Estás livre. 
 
Quando não existe “eu”,
És livre.
Onde houver um “eu”,
Ficarás aprisionado.
Reflecte sobre isto.
É fácil.
Nada abraces,
Nada rejeites.





 

Ashtavakra (? - ?)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 "Deep Meditation",
Inna Laktionova