sábado, 7 de julho de 2018

Quatro poemas de Shih Te (II)

I.

Quando era jovem, estudei por muitos livros
e aprendi a via da espada.

Aos gritos cavalguei rumo à capital,
mas logo soube que as hostes bárbaras
já tinham sido expulsas...
Não mais havia lugar para heróis.

Portanto, vim para estes cumes cristados
e, deitado, comecei por escutar 
o fluir do riacho cristalino.

Eis o sonho de glória dum jovem:
macacos montados no dorso dum boi.¹


II.

A uma grande distância, 
vejo um grupo de homens na lama,
divertindo-se com qualquer coisa 
que na lama encontraram.

Quando os observo, ali no meio da lama,
o meu coração enche-se de tristezas.
Porque simpatizo com homens assim?

Por ainda conseguir recordar o gosto da lama. ²


III.

Gostarias de saber como apanhar um rato?
Não tomes como teu mentor um gato regalado.

Se desejares aprender sobre a natureza do mundo
não leias belos livros, pois a eles te apegarás.
A verdadeira jóia encontra-se num saco grosseiro;
a natureza de Buda repoisa em cabanas.

Aqueles que se agarram à aparências das coisas
nunca conseguem compreender.


IV.

O vinho da sabedoria é como água fresca e pura.
Dele bebe profundamente, pois tornar-te-á sóbrio.

Onde vivo, nas encostas da Montanha Fria,
nenhum tolo jamais me encontrará.
Vagueio por todos os vales sombrosos,
mas nunca na direcção que o mundo toma.
Sem preocupações, sem pesares,
sem vergonha, sem glória.





Shih Te (séc. IX)







(Versões de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa elaborada por J. P. Seaton em "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)









(1) Importa aqui esclarecer que a referência ao dito animal, o boi, parece receber influências de um dos mais antigos ditados da tradição zen: «Aquele que busca a iluminação assemelha-se a um homem montado num burro em busca de um burro». Sim, a troca dos animais é óbvia, mas a influência existe. Pois o grande mestre zen Kakuan, mais tarde, irá pegar neste velho ditame e alterar o protagonista nos seus famosos desenhos, datados do século XII. É então aqui que entra a figura do boi. Não por ter considerado o dito mais valioso ou superior ao burro, se bem que frisa a sua elegância, mas porque o próprio Buda teve, como um dos seus títulos mais antigos, o epíteto de "Rei Boi". Pode parecer estranho em português tal nome, também daí retirar um elogio deveras respeitoso, pelo que só poderá ser compreendido à luz do imaginário hindu daquela época e do extremo valor que os povos atribuíam a esse animal. O sábio taoísta Lao Tzè, por exemplo, foi diversas vezes retratado, séculos depois da sua morte, no dorso de tal exemplar.
O nosso poeta, contudo, é bastante cáustico na sua crítica. Pega na velha imagem e, no lugar do homem, coloca um macaco, nítido sinal depreciativo das mais baixas características humanas, de típica manifestação em consciências ainda adormecidas, isto é, que ignoram a sua verdadeira identidade. 
Chama-se por fim a atenção do leitor para o seguinte: os desenhos que servem de referência são do século XII e Shih Te terá vivido durante o século IX. Como pôde a influência ser possível afinal? Ou resultou de mera coincidência ou, como ainda se suspeita, Shih Te não foi um homem em particular mas sim vários que escreviam sob esse nome, prática essa que até pôde ter sido estendida aos séculos seguintes. É certo que muitos se refugiaram na famosa Montanha Fria em busca da iluminação ou apenas de um modo de vida mais simples, e muitos deixaram obra escrita, mesmo em cercas e muros, e alguns assinavam com um só nome comum, uma espécie de alcunha, comportamento típico em quem desejava esquecer a sua identidade social. Como oportunamente referimos, o mesmo problema aplica-se a Han Shan, o grande companheiro deste poeta. É provável que ambos tenham existido fisicamente, sim, mas também é possível de aceitar que outros homens que vieram para as montanhas depois deles tenham deixado poemas assinados com os mesmos nomes que ambos usaram em vida. Recordamos que Han Shan significa "Montanha Fria" e Shih Te apenas "Órfão". 



(2) Trata-se de um poema onde o autor admite claramente não ter ainda transcendido por completo os apelos do mundo ou, se preferir, os prazeres mundanos. A via espiritual que decidiu percorrer tem ainda, como se vê, tal obstáculo atravessado no trilho evolutivo: o apego às ilusões da matéria, personificadas aqui na figura da lama. Recorde-se, porém, a imagem do lótus, figura tão querida nas tradições budistas, uma flor que finca as raízes na lama e floresce sobre as águas. Por isso mesmo é tida como a perfeita metáfora para o ser humano e o seu percurso de despertar. 
Na versão apresentada do poema optou-se por manter a repetição da palavra "lama", tal qual o autor decidiu realizar no seu original.