segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

INVERNO (seguido de quatro haikus condizentes com a estação.)


O Inverno é a estação do frio; não só o frio que enregela os animais, mas também o frio de cujo significado profundo e interior nos apercebemos apenas em raros momentos de medo ou de solidão.

A lua no Inverno e a chuva fria no fim do Outono evocam diferentes sensações. Mas é a neve que no seu leque de significados e variedades de tratamento corresponde às flores de cerejeira na primavera, ao cuco no verão e à lua no Outono. Apesar das tarambolas, mochos, águias e aves aquáticas, a poesia do Inverno é sobretudo a poesia da imobilidade e do silêncio.




⛄⛄⛄




I. 

Primeira neve - 
as folhas dos junquilhos
quase vergadas



II.

Intempérie - 
infiltra-se o vento
até na minha alma


III.

A água é tão fria
Como pode a gaivota
adormecer?


IV.

Separados pelas nuvens
dois patos selvagens
dizem-se adeus






Matsuo Bashô (1644 - 1694)















(Versões de Jorge Sousa Braga in "O Gosto Solitário do Orvalho (seguido de "O Caminho Estreito"), Assírio & Alvim, 2003.)
















"Neve no Templo Toji",
de Takeji Asano (1900 - 1998).


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

REGRESSO AO CAMPO (O último de cinco poemas)

 
Entristecido
por caminhos escarpados e por matagais
apoiado no meu cajado reentro em casa sozinho
o carreiro de água da montanha
é límpido e pouco profundo
aí passo os pés por água
decanto um pouco de vinho novo
mato um frango e convido um vizinho

e de repente o Sol põe-se e a sala fica sombria
só a luz das brasas nos ilumina
mas quando a alegria reina
ah! como lamentamos
que o serão tenha passado tão depressa

agora que a madrugada ameaça amanhecer
é doce o modo como esta alegria nos invade. 





Tao Yuanming (365 - 427)












(Versão de Manuel Afonso Costa in "Poesia e Prosa - Tao Yuanming", Assírio & Alvim, outubro de 2019.)















(Gravura e autor desconhecidos.)



terça-feira, 17 de novembro de 2020

O PÁSSARO MANSO E O PÁSSARO LIVRE

 
O pássaro manso vivia na gaiola,
e o pássaro livre no bosque.
Mas o destino de ambos
era encontrarem-se
e tinha chegado o momento.

O pássaro livre cantava:
- Amor, vem até ao bosque.
O pássaro preso dizia baixinho:
- Vem tu aqui,
vivamos os dois na gaiola.
E o pássaro livre dizia:
- As almas não podem expandir-se
entre grades.
- Ai - dizia o pássaro preso - 
saberei eu pousar no céu?

O pássaro livre cantava:
- Meu amor,
canta a canção do campo.
O pássaro preso dizia: 
- Fica a meu lado;
vou ensinar-te as canções dos sábios.
pássaro livre cantava:
- Não, não, não;
ninguém pode ensinar as canções.
pássaro preso dizia:
- Ai, eu não sei as canções do campo!

O amor deles é um desejo infinito,
mas não pode voar lado a lado.
Olham-se e tornam a olhar-se
através dos arames da gaiola,
mas é em vão o seu desejo.

Batem as asas, nostálgicos,
e cantam:
- Aproxima-te mais, aproxima-te mais.
pássaro livre grita:
- Não posso.
Que medo me causa 
a tua gaiola fechada!
pássaro preso canta baixinho:
- Ai, não posso.
As minhas asas morreram! 




Rabindranath Tagore (1861 - 1941)









(Tradução de Manuel Simões in "Coração da Primavera", Editorial A.O., 1981.)












("The Caged Bird",
de Niveditha Raveendran)


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

REGRESSO AO CAMPO (o quarto de cinco poemas)

 

Durante muito tempo
troquei as montanhas e os lagos
por um cargo oficial
mas agora palmilho montes e rios longamente
pois as planuras, charnecas e bosques
me encantam
levo comigo uma criança pela mão
e afastando arbustos abrindo caminho
andamos pelas ruas de uma aldeia em ruínas
divago meio perdido através de túmulos
e detenho-me nos lugares outrora habitados
pois poços e casas deixam vestígios
silvedos e bambus, cepos apodrecidos. 

Interrogo um lenhador
toda esta gente o que é feito dela
e ele responde voltando-se para mim
estão todos mortos, não ficou vivalma
basta uma geração 
para que a corte e o povo se renove
como é certeiro este ditado
a vida humana é apenas ilusão
acabamos todos por voltar ao nada.





Tao Yuanming (365 - 427)














(Versão de Manuel Afonso Costa in "Poesia e Prosa - Tao Yuanming", Assírio & Alvim, outubro de 2019.)













("Ruína",
de Lingxue.)


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

REGRESSO AO CAMPO (o terceiro de cinco poemas)


Semeei uns feijões
nas encostas voltadas a sul
mas as ervas daninhas espalharam-se
e os rebentos de feijão atrofiaram
levanto-me cedo
e aproveito para mondar o quintal
de sacho aos ombros, regresso a casa
em companhia da lua
o caminho torna-se estreito
no meio das ervas e da mata cerrada
o orvalho do crepúsculo molha a minha roupa
mas isso a mim não me incomoda nada
aproveito para praticar a não-contrariedade
e o que me importa mesmo
é não trair os sonhos. 







Tao Yuanming (365 - 427)












(Versão de Manuel Afonso Costa in "Poesia e Prosa - Tao Yuanming", Assírio & Alvim, outubro de 2019.)















("Playing a Farmer", 
Utagawa Kunisada (1786 - 1865))



terça-feira, 22 de setembro de 2020

OUTONO (seguido de três haikus condizentes com a estação)

 
O Outono não se caracteriza apenas pela queda das folhas, mas também pelo declínio das forças vitais de todos os seres, incluindo o homem.

A Via Láctea torna-se mais nítida. Todavia, é a lua a alma desta estação. Na sua remota proximidade adensa o mistério da nossa existência. O vento soa também de maneira diferente e nele podemos surpreender, por vezes, o murmúrio da própria morte.

Os gritos dos insectos ecoam por todo o lado. Mas são os crisântemos, com a beleza das suas folhas e das suas flores e o seu perfume forte e esotérico, a referência dominante da estação, logo a seguir à lua. 



🍂🍂🍂


I. 

Outono:
velhos parecem até
os pássaros e as chuvas


II.

Acabou-se o óleo na lamparina
Mas... eis a lua
que entra pela janela


III.

A pequena lagarta
vê passar o outono
sem pressa de se tornar borboleta





Matsuo Bashô (1644 - 1694)














(Versões de Jorge Sousa Braga in "O Gosto Solitário do Orvalho (seguido de "O Caminho Estreito"), Assírio & Alvim, 2003.)

















("Pássaro Azul no Outono",
de Ito Sozan (1884 - ?))

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

REGRESSO AO CAMPO (Segundo de cinco poemas)


Dou-me com pouca gente aqui no campo
no meu cantinho cavalos e carroças raramente passam

durante o dia o portão fica fechado
e na sala vazia o mundo vazio não entra

de vez em quando abrindo caminho entre as ervas
procuro a casa de alguns vizinhos

mas quando a gente se encontra falamos apenas
de como medram as amoreiras e o cânhamo

pois a amoreira e o cânhamo crescem a olhos vistos
e a minha horta de igual modo prospera

somente temo a geada e o granizo
e que tudo arruínem, como as ervas daninhas. 




Tao Yuanming (365 - 427)











(Versão de Manuel Afonso Costa in "Poesia e Prosa - Tao Yuanming", Assírio & Alvim, outubro de 2019.)












("Nêsperas e Um Pássaro da Montanha",
Anónimo, sécs. XII ou XIII)


terça-feira, 11 de agosto de 2020

CANÇÃO LXXXVIII

 

Este dia é-me mais caro
que todos os outros dias,
pois hoje o amado Senhor
é convidado em minha casa.

Os meus aposentos e o meu pátio
são belos na sua presença.
A minha saudade canta o Seu nome
e dissolve-se na Sua grande beleza.

Lavo Seus pés e observo-Lhe a fronte;
diante Dele, como oferenda deponho
o meu corpo, a minha mente - tudo o que possuo.

Que feliz dia é o dia em que o meu Amado,
que é tesoiro meu, vem a minha casa! 
Todos os males fogem do coração
quando vejo o meu Senhor.

    O meu amor tocou-O, o meu coração anseia
    pelo Nome que é a Verdade

- assim canta Kabir, o servo dos servos.




Kabir (1440 - 1518)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore em "Songs of Kabir", 1915.)





("La Prière", de Eugène Girardet

(1853 - 1907))


sexta-feira, 26 de junho de 2020

Seis haikus veranis de Bashô (Parte III)


I.

Em Hoso Tôge, que fica no caminho de Tafu no Mine para Ryumon.

acima do voo da cotovia
deito-me no céu
desta passagem de montanha


II.

por sobre o arrozal
o som da água que corre - 
ó que delícia!


III.

Caminhando ao longo da estrada de Kiso, fiquei em Ôtsu e fui ver os pirilampos em Seta. 

pirilampos - 
na água dos arrozais
luas reflectidas


IV.

escutando a flauta
que ninguém toca
no Templo de Suma


V.

pirilampos - 
pétalas das cerejeiras de Yoshino
em frente dos meus olhos


VI.

Consolando o hospedeiro, Rakugo, pela morte de seu filho.

como é frágil
uma flor
no calor do verão!









Matsuo Bashô (1644 - 1694)












(Tradução e adaptação de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016.)
















("Pássaros e Flores da Primavera e do Verão", 
primeiro de um par de seis painéis de Kano Eino - 
Período Edo, 1603-1867)



segunda-feira, 8 de junho de 2020

O Mito Genesíaco do Império Japonês (segundo a tradição xintoísta)


Quando começaram a existir os céus e a terra, formaram-se as divindades invisíveis, que tinham nos céus o seu domicílio. A terra então não era mais do que uma coisa semelhante a uma gota de azeite, flutuando, movendo-se como se move a medusa, a alforreca.

Seguidamente, outros deuses se formaram, Izanaghi e Izanami, sua irmã, contando-se no número, aos quais todas as divindades entregaram uma lança milagrosa, conferindo-lhes a missão de irem consolidar a terra.

Izanaghi e Izanami colocaram-se então sobre a ponte flutuante dos céus - o arco-íris - e dali, baixando a lança, começaram a agitar a água salgada. Após, recolhendo a lança, dos pingos de água que caíam formou-se uma primeira ilha. Despediram-se dos céus e a ela desceram; nela celebraram suas núpcias.

Do consórcio, originaram-se as ilhas do Japão e provêm muitos deuses naturais. Um deles, o deus do fogo, mata acidentalmente sua mãe. Izanaghi corre aos infernos em procura da esposa, que lá vê, sem, contudo, poder salvá-la do lugar. Foge então, espavorido. Escapo, apressa-se a entregar-se às delícias de um banho purificador. Despe-se; de cada peça de vestuário, que tira do corpo e lança à terra, nasce uma divindade. Banhando-se, de cada um dos seus gestos nasce outra divindade; lavando o olho direito, nasce o deus da lua; lavando o nariz, nasce o deus dos mares.

Ora, aconteceu que o deus dos mares meteu-se a mortificar sua irmã, a deusa Amaterasu, desrespeitando-a. Tamanha foi a última afronta, que a deusa do sol, escandalizada, recolheu-se à gruta de rochedos que habitava, fechando a entrada com uma enorme pedra; assim se ocultou às vistas. Consequentemente, céus e terra ficaram às escuras.

Então, perante calamidade tão estupenda, da qual já iam derivando terríveis consequências, todas as divindades se reuniram em conselho, a fim de deliberar o que se havia de fazer. Resolveu-se por fim reunir junto da gruta muitos galos, os quais, pelo seu canto, que anuncia comummente a madrugada, seriam de bom agoiro. Ao mesmo tempo, fez-se um troféu de ofertas, incluindo um espelho de metal, que é o emblema do sol, um colar de jóias, plantas místicas e outras várias coisas. Por último, a deusa Ame-no-uzumé, enfeitada a capricho, pôs-se a dançar e a cantar ao pé da gruta, fazendo mil trejeitos; cerca, todos os deuses, em número de oitocentos miríades, desataram num coro de risadas...

Imagine-se o estrondo. Foi então que a deusa Amaterasu, surpreendida da risota, entreabriu um pouco a sua gruta e exclamou:

- Pensava eu que, pelo meu recolhimento, se achava tudo em trevas... Que acontece porém, para que se dance aqui e todos os deuses se divirtam?...

A multidão, apresentando-lhe as ofertas, respondeu-lhe que outra deusa, mais poderosa do que ela, ali se achava, o que dava motivo a tanto júbilo... Amaterasu, a quem a explicação mais intrigava, avançou um nadinha da gruta para fora, para ver. De pronto, um deus toma-lhe a mão e puxa-a para longe; outro estende uma corda de palha à entrada da gruta, para impedir a retirada; por este modo, de novo os céus e a terra japonesa foram iluminados pelo sol!...




(Obs: Ainda hoje, nas cerimónias xintoístas, estão presentes o espelho de metal, a corda de palha, as plantas místicas e todos os outros acessórios mencionados nesta lenda, primeiramente descrita no "Livro de Memórias" (Kojiki), há mais de 1200 anos.)





Wenceslau de Moraes (1854 - 1929) ¹












(in "O Bon-Odori em Tokushima", Livros de Bordo, 2018.)













(1) Nascido em Lisboa, este célebre oficial da Marinha portuguesa, professor e, sobretudo, escritor, é, juntamente com Camilo Pessanha, das personalidades nacionais a quem mais devemos o conhecimento e a divulgação da cultura e modos de vida orientais (no caso deste autor, dos japoneses). O equivalente lusitano, portanto, a Lefcádio Hearn, de quem aliás foi contemporâneo. 
Todas as suas obras oferecem pedaços do universo nipónico que tanto o encantou em vida, ao ponto de ter vivido pouco mais de vinte anos no território - vindo a falecer em Tokushima. Na cidade de Kobe, onde desempenhou funções de cônsul, ergue-se ainda hoje um monumento em sua justa homenagem. 









"Sondando os Mares com o Tenkei" (em recorte),
de Kobayashi Eitaku
(1843 - 1890)


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Seis haikus primaveris de Bashô


I. (Em viagem pela província de Yamato, passei a noite numa quinta. O dono da casa era muito gentil e hospitaleiro.)

descansar em viagem
debaixo de ramos floridos
é como ouvir belas canções


II.

ver as cerejeiras em flor
é algo maravilhoso - 
mas o que eu tive de andar!


III.

se soubesse cantar
não pararia
até as flores murcharem



IV. (No Monte Kazuraki.)

quero contemplar uma flor
à primeira luz do dia - 
para ver a face de um deus


V. 

cansados
viajante e flores de glicínia 
batem à porta da hospedaria


VI. (Escrito em Nijikô.)

as pétalas de pequenas flores
caem em cascatas de sons - 
murmúrios sem fim






Matsuo Bashô (1644 - 1694)











(Tradução de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016.)














("Velha Romãzeira na Primavera", em pormenor 
- Masaaki Juseki.)


segunda-feira, 4 de maio de 2020

Três poemas de amor e de saudade de Al-Mu'tamid


I. (Ausência)

repeles-me!
porque deixas minh'alma abandonada?

se a tua ausência é uma longa noite
seja nosso abraço d'amor a alvorada.


II. (Separação)

só eu sei quanto me dói a separação!
na minha nostalgia fico desterrado
à míngua de encontrar consolação.

à pena, no papel, escrever não é dado
sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
linhas de amor na página da face.

se o meu grande orgulho não obstasse
iria ver-te à noite: orvalho apaixonado 
de visita às pétalas da rosa.


III. (Alma Prisioneira)

sinto-me triste com a tua ausência
e ébrio por ti com o vinho da paixão.
anseiam sangue e coração
querendo beijar-te e abraçar-te.

não me queixo! pra quê ocultares-te?
juraram minhas pálpebras não cerrar-se
até que nosso reencontro se consume.

vem amor, confia e não temas:
bem sabes que minh'alma em lume
é a prisioneira das tuas algemas.



Al-Mu'tamid (1040 - 1095) ¹









(Tradução de Adalberto Alves in "Al-Mu'tamid, Poeta do destino", Althum.com, 2016.)



(Nota: Os poemas originais não possuem título. Os que se apresentam foram escolhidos pelo seu tradutor.)








(1) Foi o terceiro e último rei dos Abádidas, uma dinastia que se formou após a queda e desmembramento do Califado de Córdoba, no então designado Al-Andaluz - hoje, Península Ibérica. Foi deles a governação da chamada "Taifa de Sevilha", a mais poderosa da época, destacada pela alta classe cultural da sua corte, e que albergava as actuais cidades de Silves, Faro e Huelva, por exemplo. (Na realidade, chegou a ocupar toda a região sul de Portugal e estendia-se até ao estreito de Gibraltar.) 
Al-Mu'tamid era filho do principal responsável pela expansão de tal Taifa e o seu respeitoso poderio, um rei sanguinário e temível. Nasceu em Beja, o que, à parte do curioso acaso, o torna o primeiro rei-poeta mais destacado a nascer em território agora português. No seguimento da sua existência, revelaria-se um rei ambicioso e um mecenas generoso, mas igualmente um dos poetas mais famosos e amados de todo o Al-Andaluz, reformador até, em diversos sentidos, da poesia árabe então vigente. Não nos espantará tais feitos tendo em conta a educação que recebeu no palácio e as mais distintas figuras que à época o frequentavam. Alguns versos seus foram compilados na magnífica antologia "As mil e uma noites", que nos dias de hoje é ainda amplamente conhecida e admirada.
À faceta de poeta, que partilhou com seu pai, juntaria a de temerário guerreiro. Com apenas treze anos liderará uma expedição militar enviada para combater uma revolta que surge na cidade de Silves (Xilb), e o seu sucesso é total. Graças a tão brilhante vitória, o seu pai nomeia-o governador da cidade. É neste local que vem a conhecer Ibn'Ammar, um poeta que também terá nascido no actual território português, e com o qual desenvolve uma relação de intensa cumplicidade, que o seu pai nunca aprovará. Ainda hoje se especula se entre ambos terá existido uma relação de índole homossexual, embora Al-Mu'tamid se tenha enamorado por várias mulheres ao longo da vida, dentre elas uma escrava marroquina (que acabaria imortalizada pela sua pena).
Quando sobe ao trono, em 1069, nomeia o seu amigo íntimo vizir do reino. E se no começo tudo corria de feição, auxiliando este dedicadamente na contínua expansão do território, culminada com a conquista de Múrcia, Ibn'Ammar, cego pela sua ambição, não tardará a conspirar contra o rei-poeta. Acabará, por isso, morto às suas mãos, a golpes de machado.
Com a crescente ameaça dos reinos cristãos, nomeadamente de Afonso VI de Leão e Castela, Al-Mu'tamid vai perdendo o controlo de um território vasto e rico, que chegou até a contar com a sedutora cidade de Córdoba, até acabar traído, uma vez mais, por aliados islâmicos do norte de África. É precisamente para essa região que será desterrado, ocupando os cinco derradeiros anos de vida com o seu amor de sempre: a poesia.
Faleceu em Agmate, no sul de Marrocos, onde ainda hoje é possível visitar o seu mausoléu, que alberga as sepulturas do poeta, sua esposa e filha. 






(O Rei-Poeta Al-Mu'tamid - 
Autor desconhecido.)

sábado, 4 de abril de 2020

CANÇÃO LXXVIII


Kabir diz: Ó sadhu¹, escuta
as minhas imortais palavras!
Se desejas o teu próprio bem,
examina-as atentamente.

Afastaste-te do Criador, donde brotaste
perdeste a tua razão, compraste a morte.

Todas as doutrinas e ensinamentos
Dele despontam, Dele crescem:
faz disto a tua certeza e não temas.

Escuta de minha boca
as novas desta grandiosa verdade!

De quem é o nome que cantas,
e em quem meditas?
Oh, sai dessa confusão!

Ele reside no coração de todas as coisas;
porquê tomar refúgio numa desolação vazia?

Se deixares o Guru² a certa distância de ti,
então será apenas a distância
que honrarás; se o Mestre, de facto,
longe estiver, então quem é esse
que vai criando este mundo?

Quando julgas que Ele aqui não está,
deambulas para longe, cada vez mais longe
procurando-O em vão, cheio de lágrimas.

Sempre que O achares longe,
será inatingível; quando perto está,
é Ele o êxtase. 

Kabir diz: Para que o Seu servo não sofra,
Ele o permeia vezes sem conta.

Conhece-te a ti mesmo, então, ó Kabir;
pois Ele está em ti da cabeça aos pés.
Canta com alegria e mantém imóvel
o teu lugar no coração.





Kabir (1440 - 1518)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore em "Songs of Kabir", 1915).











(1) Um termo bastante comum para designar um asceta, um praticante de ioga, um monge itinerante ou um místico. Em suma, alguém que percorre uma via de transcendência da matéria, visando assim a sua comunhão com o divino. De modo mais corrente poderá ser entendido como "aprendiz" ou "devoto". Devido à variedade de significados que lhe são atribuídos, opta-se por deixar o termo na sua forma original. 



(2) Vulgo "Mestre". Kabir utiliza muitas vezes esta palavra para se referir a Deus ou, de modo mais generalizado, extrapolando conceitos religiosos rígidos, ao Divino.













(Gravura ilustrando Kabir no seu tear - aut. desc.)