domingo, 30 de dezembro de 2018

MORRE AGORA PARA TI MESMO


Tens suportado imensos, terríveis lamentos,
mas ainda vives debaixo de um véu
- pois morrer para ti mesmo
é o princípio fundamental
que ainda não abraçaste.

O teu sofrimento não terminará
antes que esta morte se complete:
não poderás alcançar o telhado
até subires ao topo da escada.

Como poderás sequer experienciar
o completo naufrágio da tua embarcação 
antes de a teres carregado
com a carga final?

Esta carga derradeira é essencial;
é uma estrela que invoca a noite
e faz naufragar o barco do erro.
Quando o barco da autoconsciência 
estiver finalmente partido e afundado,
tornar-se-á assim como um sol
inundando um céu sem nuvens. 

Mas, uma vez que ainda não estás morto,
a tua angústia prevalece.
Oh, candeia de Taraz¹, morre ao amanhecer!
O sol deste universo esconde-se 
até que todas as estrelas estejam ocultas. 

Não poderás vir a conhecer Deus,
apenas negar o que se Lhe opõe.
Desejas a revelação da Realidade? Escolhe a morte!
Não aquela que te arrasta para o túmulo,
mas a morte que é transformação
- para que enfim sejas Luz. 





Rumi (1207 - 1273)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Andrew Harvey in "Teachings of Rumi" - Shambhala Pub., 1999)









(1) Taraz é uma cidade situada no actual Cazaquistão. Diz contar com mais de dois mil anos de idade, tudo devido a uma fortaleza em ruínas que remonta ao tempo do domínio chinês na zona. O seu nome inicialmente seria Talas, embora na antiguidade a designação Taraz também surja amiúde, talvez por derivação. Desde então a cidade mudou várias vezes de nome, até se fixar na sua derivação antiga - mas apenas em 1997. Durante o século XIII, o tempo de vida de Rumi, a cidade, outrora próspera por ser um local de paragem da famosa Rota da Seda, encontrava-se em nítido declínio. 
Qual, portanto, a relevância desta referência no contexto do poema? O tradutor não a esclarece nem a nossa pesquisa foi muito produtiva nesse aspecto, embora se a referência for à cidade o seu significado e relevância torna-se muito diminuto. Acontece que em persa antigo, o dialecto em que Rumi escrevia, "taraz" é um adjectivo que poderá significar beleza ou harmonia. Existe uma referência a tal num poema da antiguidade, autoria de Nizami (1141 - 1209): "sham' i - taraz", traduzido por "bela ou harmoniosa candeia (ou vela)" (Metaphor and Imagery in Persian Poetry, Ali Asghar Seyed-Gohrab, Brill, Lieden - Boston, 2012 - Pág. 98). Assim sendo, tratar-se-á de um erro de tradução? Assumindo "Taraz" como nome ao invés de adjectivo? Sem criticar o trabalho realizado, há que admitir que assim nos parece, pelo que "candeia de Taraz" será assim "bela/harmoniosa candeia", significando, em contexto, uma referência ao próprio Homem. Para todos os efeitos, dada a incerteza, deixámos a versão portuguesa seguir o que na tradução inglesa se escreveu. 











(Fotografia de: Himalayan Institute)


sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Quatro poemas de autores da dinastia Tang


I. Ganso solitário ¹

Ganso solitário: não beberás, tampouco debicarás.
Respondes ao chamamento do voo, o bando ignora.
Quem terá pena dum retalho de sombra que está só?
Perdido de ti nas dobras de mil nuvens, ainda
ao alcance do olhar, observas quem toma a dianteira.
Os pesares aumentam, como se a voz fosse ainda audível.
E os corvos no mato, sem um ponto de sentido,
grasnando, clamando aos seus grosseiros semelhantes.  


Du Fu (712 - 770)




II. Rio nevado ²

Mil montanhas sem rastro de qualquer voo,
dez mil trilhos sem vestígio humano.
Um barco solitário, um velho de capa e chapéu de bambu
sozinho pescando a neve do gélido rio.


Liu Zongyuan (773 - 819) ³




III. Ancorando, de noite, na Ponte dos Áceres ⁴

A lua afunda-se, os corvos grasnam,
a geada congela o céu.
Os áceres do rio estremecem
no revérbero das lanternas.
O meu sono é inquieto.
Para além de Suzhou⁵, o templo da Montanha Fria.
Ecos de sinos vão chegando ao barco.
É meia-noite.


Zhang Ji (? - 780) ⁶




IV. Retiro no bosque de bambus

Sozinho no remoto bosque de bambus,
toco alaúde e assobio bem alto.
Nessas profundezas desconhecidas ao Homem
chega a lua - e comigo partilha a sua luz.



Wang Wei (701 - 761)







(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções para inglês de: I) David McGraw; II) Qiu Xiaolong, Dongbo, Kenneth Rexroth, David Hinton e Gary Snyder; III) Dongbo e Gil de Carvalho; IV) Dongbo.) 







(1) Embora o poema nos conceda uma imagem bela e ao mesmo tempo pungente, e ainda que seja provável basear-se numa cena real testemunhada pelo poeta, a sua construção sugere uma interpretação mais profunda. Numa primeira análise, o lamento que é transversal ao poema pode ser entendido como sendo o do próprio poeta, ele mesmo o cisne retratado, que triste e só vê o seu bando partir sem que o consiga alcançar (a velhice e a passagem do tempo.) Contudo, uma análise mais detalhada sugere que o poeta refere-se antes ao estado geral do seu país num momento de instabilidade política, sendo todo o poema uma alegoria da situação então vivida. Assim, o cisne é uma metáfora da grande dinastia Tang, expoente máximo da prosperidade económica e do florescimento cultural na China antiga, na época da composição a registar um vincado declínio. Seguindo esta ideia bastante bem fundamentada, os corvos que em contraposição ao cisne (preto vs. branco) aparecem no poema seriam a metáfora da decadência em si, trazida pelas forças emergentes no país. Embora a dinastia Tang só conhecesse o seu fim muito depois da morte de Du Fu, em 907, o poeta testemunharia o sangrento conflito conhecido por A Rebelião de An Lushan, em 755, pelo que provavelmente o poema terá sido escrito nessa altura (e em Kuizhou, onde viveu por quatro anos, já bastante debilitado fisicamente). Os corvos que grasnam para os seus grosseiros semelhantes podem perfeitamente ser o feliz retrato de todos os partidário de tal golpe, findado apenas em 763 - e Du Fu, como dissemos, o pobre cisne que ficou para trás, condenado a viver entre esses pouco desejáveis convivas. 


(2) Apesar de ser um poema muito breve, além de famoso, existem várias versões que, sem grande prejuízo para a essência global do texto, sugerem ideias distintas a respeito da belíssima imagem que o poema transmite. É, acima de tudo, um poema bastante visual, registado em pleno inverno, na melancolia da neve e do vazio dos caminhos. Exala uma solidão notável, e em todas as principais versões isso faz-se notar. A grande questão, aqui, prende-se com o último verso do poema, onde a maioria das traduções refere o velho homem, sozinho, a pescar na neve do gélido rio. Contudo, as traduções consultadas que são da autoria de indivíduos nascidos ou com raízes no oriente, oferecem uma pequena mudança que, no retrato geral, concede ao poema uma dimensão totalmente distinta. Ora, nessas é referido que o velho homem pesca a neve do gélido rio. Isto é, num dia tão frio, tão desprovido de vida, que peixe, afinal, se poderá pescar num rio coberto de neve? (E não gelo, curiosamente, em todas surge a palavra "snow".) Assim, a ideia deixada é a de um barco solitário, um velho homem com a sua cana e um fio frágil estendido às águas, quase como num velho hábito, num cumprir de ritual da mais alta importância... pescando apenas a neve solta pelo rio. Dado que os autores orientais deixaram esta imagem nas suas traduções, por considerarmos existir uma maior facilidade na ligação às origens do poema, também ele oriental, apresentámos a sugestão de tais figuras. Resta acrescentar que, embora não haja total certeza, o rio referido talvez seja o Xiao ou o Xiang, algures no sul de Hunan, onde o poeta passou o primeiro dos seus dois exílios. 


(3) Escritor, poeta e político nascido na actual Yongji, em Shanxi. Foi um dos fundadores do Movimento Prosaico Clássico, pelo que não se estranha o facto de ter sido um dos melhores executantes da prosa chinesa da época - e não só. A sua carreira floresceu bastante na fase inicial, mas uma infeliz associação política levou-o a enfrentar dois exílios, primeiro para Yongzhou e depois para Liuzhou - onde viria a tornar-se governador. (Ainda hoje, nesta localidade, ergue-se um templo e pode-se visitar um parque que celebra a sua memória.) O exílio, apesar de tudo, trouxe a benesse do crescimento e desenvolvimento da actividade literária, exercida, além da já referida poesia e prosa genérica, ao nível da fábula e do ensaio - um dos seus mais notáveis exemplos aborda questões da filosofia confuciana, taoísta e budista. O poema que aqui se traduz é a sua mais emblemática obra, conhecido em toda a China e até no Japão. 


(4) Ainda existente nos dias de hoje, é possível encontrá-la na cidade de Suzhou - ela própria situada nas cercanias do famoso templo da Montanha Fria (Hanshan). 


(5) Situa-se no delta do rio Yangtzé, na província de Jiangsu. Foi fundada no ano de 514 a. C., e dada altura chegou a ser uma das dez maiores cidades do planeta. Berço da cultura Wu, ainda hoje é um largo centro económico e comercial com mais de quatro milhões de habitantes. 


(6) Pouco se conhece sobre este poeta nascido em Xiangyang, provavelmente em 712 ou 715. Devido a essa discrepância, e porque muitos preferem manter incerto a data do seu nascimento, optámos por apresentá-lo do mesmo modo. Sabe-se, contudo, que Zhang Ji passou nos exames imperiais, os jinshi, em 753, e desempenhou com sucesso o cargo de secretário do departamento de receitas do estado. Existem vários poemas que lhe têm sido erradamente creditados ao longo dos anos, o que só contribui para adensar a confusão em torno do quase esquecido poeta. Porém, graças à famosa antologia "Trezentos Poemas da Dinastia Tang", traduzidos para língua ocidental por Witter Bynner, o poema aqui apresentado chega até nós sem qualquer dúvida sobre a sua autoria. É, por isso, a obra mais famosa de Zhang Ji, valendo-lhe até uma estátua, ainda hoje existente, junto da famosa ponte dos áceres. Certos poetas japoneses parecem nutrir uma predilecção pelos seus poemas, já que devido ao seu estilo de composição muitas vezes os utilizam nos seus Shigin, uma tradicional forma de recitar poesia através do canto.