quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Cinco haikus invernais de Bashô (Parte II)


I.

é horrível
ter geada na almofada? - 
não mais do que tomar remédios 


II.

serás um homem com sorte
se no primeiro grande nevão
estiveres em tua casa ¹


III.

a água está muito fria
e a gaivota
não consegue adormecer ²


IV.

no inverno
nenhuma lagarta
é ainda borboleta 


V.

mesmo após muitos invernos
o coração ainda bate forte
ao ver os pinheiros decorados ³


VI.

cai neve pela noite dentro
bebo vinho
mas o sono continua longe ⁴







Matsuo Bashô (1644 - 1694)










(Tradução de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016.)










(1) Antecedendo este haiku encontra-se a seguinte nota, escrita pelo próprio autor: «Queria ver, da minha cabana, o primeiro nevão do ano; muitas vezes, ia espreitar na esperança de que isso estivesse a acontecer, já que o céu estava cada vez mais nublado. Até que, em 31 de janeiro, para minha alegria, a neve começou a cair.»
Acrescente-se que Bashô raramente viajava durante o inverno. 

(2) Antecede este haiku a seguinte breve nota: «Genki ofereceu-me algum vinho, e este poema é a minha retribuição.»
Especula-se que a gaivota do poema é uma imagem metaforizada do próprio Bashô, que nessa noite de inverno tão fria não conseguia adormecer - até que o seu amigo lhe ofereceu um pouco de vinho, ajudando assim a suavizar a incómoda situação.

(3) Bashô teria 34 anos quando escreveu este haiku. Uma percepção ocidental facilmente situará o poema na época natalícia, dado que se fala de "pinheiros decorados". Nada mais falso, já que o Japão não possuía uma maioria cristã, o que ainda hoje se verifica. Será, por isso, uma interpretação equivocada. O poema foi escrito em época de ano novo, onde tradicionalmente se colocavam ramos de pinheiro e de bambu junto às portas das casas, mas do lado de fora, enfeitando assim a sua entrada. Ainda hoje se pratica tal gesto festivo.

(4) Bashô deixou-nos a seguinte nota: «Toda a noite caiu neve em Fukagawa.»










("Neve ao Entardecer em Kanbara",
de Utagawa Hiroshige (1797 - 1858)


quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

CANÇÃO LXXVII


Oh, deixa que juntos rumemos 
ao país onde reside o Amado, 
o carrasco do meu coração!

Aí o Amor enche o seu vasilhame
com água do poço, embora
não possua corda para o fazer;

aí as nuvens não cobrem o céu,
porém a chuva tomba gentilmente.
Oh tu, que corpo não possuis! 
Não te sentes na soleira da porta, 
dá um passo em frente
e banha-te nessa chuva!

Aí há sempre luar, mas nunca escurece;
e quem fala dum sol apenas?
Essa terra ilumina-se 
por mil raios de mil sóis.





Kabir (1440 - 1518)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa de Rabindranath Tagore in "Songs of Kabir", 1915.) 














(Nirvana, de Andra Ponomarenco)