sábado, 30 de janeiro de 2016

Três poemas de Wang Wei


I. A lua sobre o rio do leste


A lua sai de dentro da montanha,
eleva-se, devagar, sobre o portão da casa.
Mil árvores perfuram o humidade do céu,
nuvens negras voam no espaço.
De súbito, o luar embranquecendo a floresta,
a terra respira no orvalho frio.
Águas de outono cantam nas cascatas,
uma névoa azul paira sobre as rochas,
sombras partidas abraçam cumes vazios.
Como num sonho, tudo é transparente, puro.
De pé, à janela, diante do rio,
de madrugada, sonolento, sem pensar.



II. Merendando com os monges da montanha Fu


Avançado nos anos, conheci princípios puros,
hoje, cada vez mais afastado da multidão.
Espero a vinda dos monges da montanha solitária.
Já varri a entrada do meu humilde lar.
Depois dos picos e nuvens, ei-los por fim chegados
à pobre casa de colmo, o meu lar.
Sentados em esteiras, comemos pinhões,
queimamos incenso, lemos os sutras.
Extingue-se o dia, acendemos lanternas,
anuncia-se a noite, tocamos o ching.
Ao compreender que a quietude é fonte de alegria,
a vida concede-nos a liberdade serena.
Porquê tanta pressa em regressar?
No mundo tudo é vazio e nada.



III. Para o magistrado Zhang


Gosto da quietude no entardecer dos anos,
o coração livre, ausência de mil coisas,
a alegria de voltar à velha floresta.
A brisa dos pinheiros desenlaça minhas vestes,
raios de luar acariciam o som da cítara.
Perguntas: Qual a verdade suprema?
Vamos ouvir, lá longe, entre os canaviais,
a canção do pescador.



Wang Wei (701 - 761) (*)




Todas as versões apresentadas são traduções de António Graça de Abreu (in "Quinhentos Poemas Chineses", Nova Vega, 2014).






(*) Conforme havíamos prometido na nossa última publicação, aqui deixamos três poemas de Wang Wei que comprovam, de modo mais directo ou indirecto, a sua inclinação budista. Foram estes o seleccionados, por ora, mas poderiam ter sido muitos outros, dada a centralidade de tal tema na sua obra poética.

Dentre os poemas apresentados, é o segundo o mais explícito sobre a sua simpatia pelos métodos e pensamento budista, dado que relata por meios bastante claros um encontro em sua casa com os monges de um templo situado na montanha de Fu. Nas entrelinhas consegue-se entender o expressar de um modo de vida muito simples e abnegado, trilho, segundo as suas crenças, que os guiará a um maior contacto com a sua essência mais íntima. 
Já o poema de abertura guarda o seu segredo no verso final, sendo o mesmo o mais revelador. A utilização da expressão «não pensar» é condizente com o conceito de vazio que o Budismo foi beber ao Taoísmo, o mesmo que o remete para a verdadeira identidade do ser - manifestada apenas quando a mente, ou ego, se revela ausente. "Não pensar", por isso, convida a um estado interior de quietude que a prática da meditação, por si só, também visa fomentar no indivíduo.
Por fim, e embora o último dos três poemas seleccionados seja uma dedicatória, lemos nele um convicto apelo ao experiênciar das coisas simples da existência. Louvando as virtudes da liberdade interior e de uma vida de desapego, tenta tocar na questão mais primordial de todas: a verdade suprema. Aqui, o desenlace é extraordinário, já que, conforme se leu, Wang Wei deixa o seu amigo sem resposta, mas com um convite para escutar «a canção do pescador». Porém, o acto, pleno de mistério, é imensamente revelador se viajarmos até aos funduras do seu sentido.










terça-feira, 12 de janeiro de 2016

CANÇÃO DA BELA DE LUOYANG


Habita aqui em frente a bela de Luoyang,
um rosto puro de menina de quinze anos.
O marido usa arreios de jade no cavalo baio,
os criados servem pedacinhos de carpa em pratos de ouro.
No seu lar, pavilhões vermelhos, antecâmaras pintadas,
pessegueiros rosa, salgueiros verdes debruçando-se sobre 
[os telhados.
Ao sair, sob um véu de seda, deixa o pavilhão dos sete 
[perfumes;
ao regressar, escondem-na leques preciosos, cortinados 
[com nove flores.
O marido rico, jovem como a primavera,
ultrapassa Li Jun em esplendor e fausto.
Apaixonado pela menina de Jade Verde, ensina-a a dançar;
feliz, oferece aos amigos pequenas árvores de coral.
Nasce o dia, extinguem-se as nove velas do candelabro;
as chamas esvoaçam como pétalas de flor,
não cessaram ainda jogos e canções.
Dia e noite, a gente importante da cidade
vem de visita, em reverência como às beldades de outrora.
Quem pensa na menina de Yue, de pele de jade,
pobre, ignorada, lavando roupa nas águas do rio?



Wang Wei (701 - 761) (*)




(Tradução de António Graça de Abreu in "Quinhentos Poemas Chineses" - Nova Vega, 2014)



(*) Nasceu em Qixian, província de Shanxi, aquele que foi um dos maiores poetas da dinastia Tang - e, sem grande exagero, de toda a poesia chinesa.  
Aos dezoito anos já obtivera aprovação nos criteriosos exames imperiais, que davam à época acesso ao mandarinato. Durante quase toda a sua vida ocuparia, assim, uma posição de honroso serviço para com a corte imperial. Em 758, inclusive, seria nomeado "Chanceler da China". O acumular de toda essa experiência terá certamente aguçado o seu olhar e depurado a sua percepção de homem e poeta, como comprova o poema seleccionado - retrato que não expurga, apesar do seu firme e nítido traço, a crítica de cariz social. 
Além da poesia e das ocupações de homem de estado, notabilizou-se ainda na arte da caligrafia e pintura - apesar de nenhuma das suas criações na área tenham sobrevivido até hoje. Não obstante, revelou-se um dedicado amante da natureza e, a par de Han Shan, foi um dos primeiros poetas a abraçar e a incorporar em seus trabalhos os princípios do budismo zen (houve quem lhe chamasse "o poeta de Buda"). Ainda que o poema de hoje não seja prova viva disso mesmo, fica no ar a promessa de que numa outra ocasião esses outros serão de muito bom grado partilhados com os nossos amáveis leitores.