domingo, 12 de dezembro de 2021

SÊ O PRÓPRIO SOL

 
Aquele que é sincero na sua busca espiritual deverá transcender as alegrias e os prazeres, meros reflexos da glória divina. Não deverá permitir que coisas tais o satisfaçam; ainda que provenham de Deus, que existam pela graça divina e possuam a radiância da beleza divina, não são eternas. O que é domínio de Deus é eterno, o que é domínio do Homem efémero é.

Pensa nos raios de sol cintilando sobre as casas. São raios de sol, e por isso são luz, mas estão ligados ao sol, não às casas. Quando o sol se põe, a sua luz desvanece. O que temos a fazer, então, é ser o próprio sol, para que todo o medo, que nasce da separação, possa finalmente, e para sempre, cessar. 




Rumi (1207 - 1273),
in "Cartas".










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Andrew Harvey in "Teachings of Rumi" - Shambhala Pub., 1999.)














(Sem título - 
Nicki Geigert)





sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Oito haikus de Kobayashi sobre gatos

 
I. 

adormecido
no altar doméstico¹
o gato ladrão


II.

folhas caindo - 
o gatinho rodopia
tentando apanhá-las


III.

a sua cara tão inocente - 
a gata com cio
regressa a casa


IV.

dez gatinhos
dez cores
diferentes


V.

gatos com cio
separados pela parede - 
amantes que não se tocam


VI.

o guizo do gato
por entre as peónias
ora aqui ora ali


VII.

arranhando a janela e chorando
o gato banido - 
noite gelada


VIII.

pequeno tapete de palha - 
o gato chega com um casaco
de flocos de neve




Kobayashi Issa (1763 - 1827)

















(Tradução de Joaquim M. Palma in "Kobayashi Issa: Os animais - haikus", Assírio & Alvim, 2019.)











(1) Era tradição cada casa possuir um altar privado, fosse de índole xintoísta ou, como o poeta, budista. Geralmente, eram aí feitas oferendas a um certo deus ou a Buda, e também se queimava incenso. Era de igual modo comum existir um que honrasse e celebrasse a memória dos antepassados familiares. Por aquilo que lemos no haiku, depreende-se que o gato tenha comido a oferenda feita e, após o repasto, decidido tirar uma boa soneca em pleno local do crime. 












"Hotaruso",
de Fumika Koda (1986 - )


terça-feira, 16 de novembro de 2021

Oito haikus outonais de Bashô (Parte II)

 
I.

os nossos corações estão em paz
na pequena sala de chá - 
o outono ronda lá fora


II.

neblina rente ao chão -
debaixo do luar
uma planície de nuvens


III.

campos de algodão - 
flores de luar
por todo o lado


IV. 

(Ao saber que a monja Jutei¹ tinha falecido.)

nesta festa das almas²
também tu
vais estar presente


V. 

roncos de veado
dentro da noite - 
a tristeza


VI.

de repente
uma nuvem encobrindo o sol - 
aves migratórias


VII.

(Pensamento...)

pela estrada
onde ninguém passa
parte o outono


VIII.

outono - 
porque será que envelhecer
é como um pássaro dentro das nuvens?






Matsuo Bashô (1644 - 1694)











(Tradução de Joaquim M. Palma, in "Matsuo Bashô - O Eremita Viajante (Haikus - Obra Completa)", Assírio & Alvim, 2016.)









(1) Especula-se que Bashô tenha tido um relacionamento amoroso com esta mulher, uma monja xintoísta, mas de modo geral aceita-se a ideia como mera suposição. Ademais, existem indícios, alguns deixados pelo punho do próprio Bashô, que ligam o poeta a um comportamento homossexual. Em todo o caso, isto poder-se-á afirmar: Bashô conheceu Jutei e por ela nutria um certo carinho.


(2) O Obon é celebrado todos os anos por volta do dia 15 de agosto (depende das regiões do Japão), sendo um festival muito antigo, de origens budistas, que homenageia os antepassados já falecidos. É, assim, costume as famílias deslocarem-se aos cemitérios ou aos lugares de repouso dos seus entes queridos para limpar os túmulos e honrar a sua memória. Dura três dias, esta festividade que inclui sempre uma dança: o Bon Odori.











"Ervas Outonais ao Luar",
de Shibata Zeshin 
(1807 - 1891)




quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Breves reflexões e conselhos de Kamo No Chomei

 

Um rio corre sem parar, mas a água que corre nunca é a mesma. Aqui e ali na superfície tranquila, flocos de espuma aparecem e logo desaparecem. O mesmo se passa com os homens e os lugares onde habitam.


 
***

 
Aquele que se conhece a si mesmo e que sabe como tudo acaba, quer apenas paz e fica feliz por não ter nada que o aflija. (…)
 

***

 
Quando se trata de amigos, eles respeitam a riqueza e preferem aqueles que são hospitaleiros, mas têm pouca estima por aqueles que são benevolentes e honestos. Os melhores amigos que se pode ter são as flores e a lua.
 

***
 

Todas as pessoas têm dois servos, as mãos e os pés. Estes as servirão como elas desejarem. Como a mente conhece o corpo, fá-lo trabalhar quando está vigoroso e permite que descanse quando está exausto. A mente usa o corpo, mas não excessivamente e quando o corpo está cansado não fica com raiva. Ir a pé e fazer o seu próprio trabalho é o melhor caminho para ter força e saúde. Porquê recorrer ao trabalho dos outros?

 
***
 

A realidade depende inteiramente da tua mente. Se esta não está em paz, de que servem cavalos e bois e as sete pedras preciosas? Um palácio ou uma mansão sumptuosa seriam insuficientes. (…)
 

***
 

Se alguém duvidar das minhas palavras, que considere o exemplo dos peixes. Eles nunca se cansam da água; mas se não fores um peixe não podes compreender os seus sentimentos. Os pássaros também amam a floresta, mas a não ser que sejas um pássaro, não podes entender como eles se sentem. A mesma coisa se passa com a vida de um eremita: como entendê-la antes de experimentá-la?
 
 
 
 
Kamo No Chomei (1155 – 1216) ¹







(Versões de Jorge Sousa Braga in "Hojoki - Reflexões da minha cabana", Komo No Chomei, Assírio & Alvim, 2021.)









(1) Nasceu em Shimokamo, no Japão, filho dum membro da hierarquia religiosa xintoísta do templo de Kamo, na cidade de Quioto. 
Com apenas sete anos foi introduzido na corte imperial. Julga-se ter sido aí que descobriu e desenvolveu o seu amor pela poesia e pela música. Abandona-a, contudo, aos vinte anos, após a morte do pai. Como era tradição, teria de ocupar o lugar que pertencera ao progenitor falecido, mas intrigas na corte engendradas contra a sua pessoa acabariam por afastá-lo do seu direito inato. 
Com a restauração da Ordem da Poesia, passa a integrá-la, desempenhando nela um papel deveras activo. Já depois dos trinta anos, realiza uma peregrinação ao santuário xintoísta de Ise, da qual resultará um diário de viagens - que somente em fragmentos chegará aos nossos dias. 
Em 1204 converte-se ao budismo, adopta o nome de Ren-in (que significa "semente de lótus") e refugia-se numa montanha. É já na sua vida de eremita que resulta a obra donde estas reflexões foram retiradas, uma outra designada "Tratado Sem Nome" e diversos poemas e contos de teor budista.
A opção pessoal pela via do isolamento terá realmente incrementado a sua produção literária, mesmo que o próprio tenha admitido escrever poemas e compor canções pelo simples prazer da criação, mas dada a sua existência excepcionalmente atribulada não se poderá estranhar a decisão de cortar com o mundo e suas ilusões.
Não obstante já ter vivido num período histórico de grande instabilidade política e social, Kamo No Chomei experimentou na própria pele calamidades que praticamente nenhum outro homem vivenciará em conjunto numa só vida. Ora vejamos: um devastador incêndio em 1177, um tufão três anos depois, a grande fome de 1181 e 1182 e, por fim, um terramoto em 1185. De certa forma, sobreviveu a todas essas catástrofes, permitindo assim que o seu testemunho, e a mensagem que dele resulta, pudesse alcançar as gerações vindouras. Sem margem para dúvida, tais experiências marcaram bastante o seu trabalho escrito, estando na base da sua escolha por uma vida mais frugal, mais autêntica, em comunhão com a natureza e consigo mesmo, dedicada aos preceitos budistas de então. 
O seu Hojoki, Reflexões da Minha Cabana, escrito no seu eremitério, oferece-nos uma escrita despojada e um variado conjunto de reflexões e conselhos sobre o mundo e o papel do homem no mesmo, assim como o seu testemunho de eremita. Tornar-se-ia um clássico incontornável da literatura japonesa.
Kamo faleceu na sua cabana de montanha aos sessenta e um anos de idade. 







(Kamo No Chomei)


sábado, 18 de setembro de 2021

Oito haikus - sécs. XV a XIX

 

I.

para aprender a morrer
observa as flores de cerejeira
observa os crisântemos


Anónimo.




II.

as flores caídas
regressam todas ao ramo
quando observo borboletas

Moritake (1452 – 1540)




III.

o orvalho¹ chega
e não discrimina
faz casa donde está

Sôin (1604 – 1682)




IV.

uma folha cai
e logo outra
roubada pela brisa

Ransetsu (1654 – 1707)




V.

silenciosamente, as flores
falam ao ouvido interior
– verdadeira obediência

Onitsura (1660 – 1738)




VI.

desde que as glórias-da-manhã²
fizeram o balde do poço refém
por água mendigo

Chiyo (1701 – 1775)




VII.

apenas a lua e eu
sozinhos nesta ponte
cada vez mais enregelados

Kikusha-Ni (1752 – 1826)




VIII.

quando o rouxinol-do-bosque³
canta, o velho sapo
arrota em resposta

Shôha (séc. XIX)










(Versões de Pedro Belo Clara a partir das versões inglesas elaboradas por Sam Hamill em “The Sound of Water: Haiku by Bashô, Buson, Issa and Other Poets”, Shambhala Pub., 1995.)











(1) Na versão inglesa surge "white dew", ou seja, "orvalho branco". Embora possa parecer algo redundante em português, importa referir que no calendário lunar chinês, que se divide em 24 ciclos solares, o 15º designa-se "orvalho branco". Inicia-se geralmente em meados de setembro e marca o início da fase outonal mais fria, onde as temperaturas mais baixas dão usualmente lugar a tal fenómeno - que, no fundo, corresponderá à mais familiar geada. Assim sendo, o uso desse termo poderia constituir uma tradução mais acurada, mas a versão inglesa do texto não de aproximou dessa designação (poderia recorrer a "frost"), optando por não interpretar o termo, simplesmente apresentá-lo em tradução directa. 


(2) Nome comum dado a uma família de plantas que alberga vários géneros. São geralmente trepadeiras anuais de rápido crescimento, por vezes designadas por corriola ou cordas-de-viola. Têm a particularidade de fechar as suas flores quando a luz solar se extingue. 


(3) A versão inglesa propõe a forma "bush warbler", literalmente "toutinegra-do-bosque". Contudo, no poema original surge a palavra uguisu, que em inglês corresponderá a "rouxinol japonês do bosque", isto é, o famoso Horornis diphone, um exemplar típico do Japão e de outros países asiáticos. Em suma, um tipo de rouxinol em concreto e não um tipo mais vago de ave que a tradução inglesa poderia sugerir. Naturalmente, compreende-se a omissão do termo que faz referência à sua terra nativa, pois o autor nunca o utilizaria. Transpondo tudo isto para o português, dado que a espécie não existe por cá, poder-se-ia utilizar a sua versão mais aproximada, que seria o rouxinol-bravo (Cettia cetti), dado pertencer, como o seu primo japonês, à alargada família dos Cittiidae e, como este, tratar-se de um exemplar mais facilmente escutado do que observado, um amante de densas matas. Contudo, uma vez que o espécime português não existe na Ásia, e considerando também a extensão desta família de aves canoras insectívoras, optou-se pela forma que mais fielmente indicará o género de pássaro em causa: o rouxinol-do-bosque.










(Autor desconhecido.)


sábado, 11 de setembro de 2021

Seis breves poemas de Bai Juyi

 
I. Os grous

As pessoas procuram sempre o que lhes dá prazer;
imutáveis as coisas, mutáveis os sentimentos dos homens.
Talvez os grous possam dançar, elegantes e altivos.
Gosto mais deles, de pé, silenciosos, solitários. 


II. O espelho e a taça

Quero trocar o espelho de bronze 
por uma taça dourada ou de jade branco.
No espelho não posso fugir à velhice,
mas minhas penas dissipam-se na taça de vinho.


III. Frescura de outono

Calmo, tranquilo, durmo o dia inteiro;
velho, doente, esquecido pelos outros homens.
Ao cair da tarde, à entrada da casa,
um imenso tapete de flores de acácia.


IV. Início da primavera

A neve derrete, os dias cada vez mais quentes,
o gelo desaparece, raios de sol inundam a terra,
pouco a pouco os rebentos ganham força.
A primavera só não desfaz a geada branca em meus cabelos.


V. Velhice 

Por vezes, um dia inteiro caminhando no jardim;
por vezes, até nascer o sol sentado diante da candeia.
Ninguém entende os meus silêncios.
De quando em quando, um longo suspiro.


VI. Os damasqueiros da aldeia de Zhao

Venho todos os anos ao desabrochar dos damasqueiros.
Há três lustros, tantas vezes olhei as flores vermelhas!...
Tenho setenta e três anos, regressarei uma vez mais?
Esta primavera estou aqui para lhes dizer adeus.





Bai Juyi (772 – 846)













(Traduções de António Graça de Abreu in "Poemas de Bai Juyi", Instituto Cultural de Macau, 1991.)














"Love Birds and Pink Flowers",
de T. C. Chiu


quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Cinco poemas de Hafiz, o místico poeta persa

 
I.

Um poeta é alguém
que verte luz para uma colher,
e depois ergue-a para nutrir
a tua boca ressequida, bela, sagrada.


II.

De manhã,
enquanto despertava,
aconteceu outra vez:

aquela sensação
que Tu, Amado,
havias permanecido
sobre mim, de vigia,
a noite inteira;

uma sensação dizendo
que assim que começasse
a ficar agitado
encostarias os Teus lábios
à minha testa,
e acenderias uma candeia
dentro do meu coração.


III.

Um dia, o sol admitiu:
sou apenas uma sombra.

Como desejaria mostrar-vos
a Eterna Incandescência
que projectou
a minha cintilante imagem!

Como desejaria revelar-vos,
quando estais sós
ou rodeados de sombras,
a deslumbrante luz
daquilo que em verdade são!


IV.

Raramente deixo a palavra não
escapar da minha boca,
pois para a minha alma é tão óbvio
que Deus disse sim! sim! sim!
a todo o luminoso movimento
que acontece na existência.


V.

Sou feliz, mesmo antes de ter motivo.

Estou cheio de luz, mesmo antes
do céu saudar o sol ou a lua.

Queridos amigos,
estamos enamorados de Deus
há muito, muito tempo.

Que pode Hafiz agora fazer,
se não dançar para sempre?





Hafiz (1320 - 1389)













(Versões de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa elaborada por Daniel Ladinsky in "I Heard God Laughing: Poems of Hope and Joy - Renderings of Hafiz", Penguin Books, 2006.)
















(Gravura de Hafiz,
por Abolhassan Sadighi
(1894 - 1995))


sexta-feira, 2 de julho de 2021

Oito haikus veranis de Yosa Buson

 
I.

(Que pena eu não ter seguido o conselho de Saigyo!¹)

não saí da minha cabana
e agora a flor da cerejeira
já é fruto


II. 

nos pêlos das lagartas
gotas de orvalho - 
noites curtas


III.

liberto pirilampos
dentro da rede mosquiteira - 
oh que alegria!


IV.

numa padiola
alguém doente é levado - 
a colheita do trigo continua


V.

(Num lugar chamado Kaya, em Tanba.)

atravessar o ribeiro no verão
com as sandálias nas mãos - 
que delícia!


VI.

concha vazia - 
o caracol
ausentou-se


VII.

as vozes e a água
entram no arrozal - 
luar de verão


VIII.

sem rede mosquiteira
toda a noite
acordado





Yosa Buson (1716 - 1784) 












(Versões e notas de Joaquim M. Palma in "Yosa Buson, Os quatros rostos do mundo - haikus", Assírio & Alvim, março de 2020.)








(1) Saigyo (séc. XII) foi um poeta muito apreciado por Bashô; tal como tinha sonhado, morreu entre as cerejeiras floridas, ao luar.












("Pássaros e Flores das Quatro Estações",
Autor desc. - finais do séc. XVI)

segunda-feira, 21 de junho de 2021

VERÃO (seguido de seis haikus condizentes com a estação)


O calor do dia e a frescura do entardecer são coisas simples e elementares, mas é limitada a poesia que nelas reside. O mesmo se passa com a chuva, pesada e monótona, e que no entanto transfigura tudo, mesmo o coração do homem.

O cuco é um pássaro migratório que chega ao Japão no início da primavera. É bastante mais pequeno que um pombo, de cor cinzenta escura no dorso, e clara no ventre. Vive na profundeza das montanhas e põe os ovos no ninho do uguisu. O seu canto nocturno evoca tanta melancolia, que é como se sangrasse pela boca enquanto canta. Na verdade, o interior da sua boca é vermelho de sangue.

O verão é a estação dos insectos. Os pirilampos e as cigarras confundem-se com as moscas, mosquitos, pulgas e piolhos. A ternura budista envolve-os numa atmosfera de humor. A peónia é a flor desta estação, o símbolo da glória do homem e da natureza. 



🌞🌞🌞



I. 

As cigarras cantam
sem saberem que é a morte
que as escuta


II.

Com relutância
emerge a abelha
do coração da peónia


III.

Escondido sob a folhagem
mesmo o apanhador de chá pára
para escutar o cuco


IV.

Silêncio:
as cigarras escutam
o canto das rochas


V.

Num atalho da montanha
sorrindo
uma violeta



VI.

De tanto cantar
não resta da cigarra
senão a sua casca






Matsuo Bashô (1644 - 1694)













(Versões de Jorge Sousa Braga in "O Gosto Solitário do Orvalho - seguido de "O Caminho Estreito", Assírio & Alvim, 2003.)















(Autor desconhecido)




terça-feira, 8 de junho de 2021

O MENDIGO

 
Era um pedinte que levava já muitos anos a mendigar e que se habituara de tal modo a viver da mendicidade que não queria voltar a trabalhar, apesar de haver gente que, de vez em quando, lhe oferecia trabalho. Ao longo do dia, vagueava pelas ruas a pedir esmola e, certo dia, inesperadamente, encontrou-se com um amigo de infância. Puseram-se ambos a passear e a contar as suas coisas. O amigo que se encontrara com o mendigo afirmou:

- A verdade é que não me posso queixar. Correu-me tudo muito bem ao longo destes anos. A minha vida foi fácil e o destino mostrou-se generoso.

- A mim, correu-me francamente mal, como vês - replicou o pedinte. - Há anos que ando a mendigar de um lado para o outro, suportando o frio e os maus-tratos de muitas pessoas. É muito dura a vida de um mendigo. 

Foram passeando e conversando. Eram tantas as queixas do mendigo que o amigo lhe declarou:

- Tinha um grande carinho por ti quando éramos pequenos. Vou, por isso, fazer-te uma confidência. Tenho poderes sobrenaturais. Não fiques surpreendido; é verdade. E acho que te poderei ajudar a melhorar a tua miserável existência.

Tocou, então, com o indicador num tijolo e transformou-o num lingote de ouro.

- Para ti - disse, entregando-o com carinho ao mendigo. - Isto aliviará muitas das tuas penas. Já não terás de passar fome, frio e maus-tratos.

O mendigo respondeu:

- Mas a vida é tão longa e dá tantas voltas! Tão longa, tão longa! 

Passaram junto a uma escultura em pedra de um leão. O homem com poderes entendeu o indicador, tocou no leão e converteu-o em ouro.

- Agora, nada te faltará - disse ele ao mendigo. - Contas com uma verdadeira fortuna.

- Mas a vida é tão longa, tão imprevisível... - argumentou vorazmente o mendigo. - É tão longa que aquilo que julgamos ser suficiente acaba por não o ser.

- Bem, que mais posso eu fazer por ti?

E o mendigo respondeu:

- Dá-me o teu dedo!





Tradicional (do Tibete)













(Conto colectado por Ramiro Calle e editado em "Contos Espirituais do Tibete", Albatroz, 2021.)












("The Beggar,
de Lusekelo Mwasanga.)

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Seis haikus de Yosa Buson

 
I.

como o pôr-do-sol
o canto do rouxinol
foi-se apagando


II.

(Contemplando o campo)

em silêncio chora a erva
quando o sol se põe - 
orvalho


III.

aqui no cimo da colina
a melancolia no meu coração - 
rosas selvagens em flor


IV.

no encontro com o rio
cada riacho
perde o seu som


V. 

os deuses abençoam
os meninos nus
que não param de dançar


VI.

agora sei
que o outono chegou - 
atchim!




Yosa Buson (1716 - 1784) ¹









(Versões de Joaquim M. Palma in "Yosa Buson, Os quatros rostos do mundo - haikus", Assírio & Alvim, março de 2020.)












(1) Yosa Buson terá sido, muito provavelmente, um dos poucos poetas que atingiram uma elevada notoriedade sem sofrer os reveses de uma existência atribulada. Perdas pessoais, tragédias persistentes ou pontuais, problemas financeiros ou vícios incontornáveis: nenhum destes ingredientes temperou, com agravo, a existência de Buson.
Sem dúvida que tal benesse se reflectiu na sua arte, nunca apressada para ser algo vendável ou atingir fama, nunca manchada pela fúria ou revolta contra o rumo dos acontecimentos, conforme se lhe iam apresentando. Aliás, Buson, apesar de hoje ser considerado um dos quatro grandes mestres do género poético haiku, viu a sua obra poética algo relativizada em vida, apesar de respeitada. Publicou livros, teve discípulos, participou em reuniões de poetas e era, de facto, respeitado no meio, mas não se poderá dizer que tenha em vida alcançado uma fama notória como poeta. No século seguinte à sua morte, é importante frisar, já poucos se lembravam do nome. Somente graças a Shiki, poeta do séc. XIX, o Japão adquirirá interesse em descobrir a obra dum poeta que, à época, auxiliou a revigorar o género poético celebrizado por Bashô
Pouco se sabe da infância de Yosa Buson, então Taniguchi Buson. Nasceu perto de Osaka, em 1716, provavelmente originário duma família de relativas posses: proprietários rurais. Os pais separam-se quando atravessa o período da adolescência, tendo ambos falecido pouco depois, sensivelmente na mesma altura. Teria Buson dezassete anos. Talvez aqui se encontrem as razões do poeta pouco ter falado sobre a sua infância, sequer visitar a sua aldeia natal. Diga-se que anos depois, já perto do final da sua vida, Buson vive a menos de quarenta quilómetros da dita aldeia e não existe qualquer registo que a tenha visitado sequer uma vez. 
Após a morte dos pais, parte para Edo (Tóquio) e começa a estudar poesia. Lê e estuda a fundo a obra de Bashô e interessa-se por outras artes, como a caligrafia e a pintura. 
Em 1742 parte em viagem pelo Japão, e é nessa altura que desenvolve um estilo literário onde também se destacou: o diarístico, composto em estilo de literatura de viagem. Sendo budista, visita vários templos e encontra-se com vários monges, desenvolvendo a sua arte e o espírito, e, tendo talento para a pintura, começa por elaborar vários painéis para adornar esses lugares religiosos. Curiosamente, Buson começa por ser conhecido pela sua pintura, e não pela arte poética - na qual admitiu saber-se mediano, apesar de sentir que só com vários anos de prática tal arte poderia ser dominada. Graças a isso, vai conseguindo a sua estabilidade financeira. 
Já com quarenta e dois anos fixa-se em Quioto, onde viverá o resto dos seus dias. Decide, então, adoptar o nome "Yosa", provavelmente em homenagem a sua mãe e à sua região natal. Três anos depois casa-se, finalmente, e tem uma filha, de nome Kumo. Pelo que se sabe, por haikus e cartas, a sua vida familiar decorreu sem grandes sobressaltos. Apenas, anos depois, o divórcio da filha constituirá um episódio de maior relevo, mas ainda assim pouco significativo. 
Passando as cinquenta primaveras de vida, Buson, atingindo uma perfeição notável na pintura, e gozando fama no meio, dedica-se com maior afinco à poesia. Funde um grupo literário com três amigos poetas e investe seriamente no aperfeiçoamento da sua interpretação desta arte. Em homenagem ao grande mestre Bashô, paga do próprio bolso a restauração da cabana onde este viveu.
Em janeiro de 1784, Yosa Buson dita ao seu amigo Gikkei os últimos três haikus, falecendo de seguida. Contava já com sessenta e sete anos de idade. Por sua vontade, foi enterrado junto da cabana de Bashô, onde a sua esposa se lhe juntou, anos depois. No ano seguinte, os discípulos de Buson decidem assumir o risco de publicar uma antologia dos seus haikus, mesmo que o próprio, em vida, se tenha recusado a fazê-lo.











(Yosa Buson 
- Autor desconhecido.)


terça-feira, 20 de abril de 2021

O REI E O PASTOR

 

Era uma vez um rei que começara a questionar-se se alguém teria a capacidade de adivinhar o que ele pensava. Nunca se perguntara se era ou não possível a leitura do pensamento, mas, nas últimas semanas, não conseguia deixar de reflectir sobre isso. Poderá alguém ler os meus pensamentos? Existirá alguém capaz de adivinhar aquilo que penso? E tanto assim era que o monarca começou a fazer testes relativamente às pessoas que lhe eram mais próximas. 

Foram muitos os que tentaram, mas fracassaram rotundamente. Bastou que assim fosse para o rei se empenhasse ainda mais em encontrar alguém capaz de se ligar aos seus pensamentos. 

Chamou o seu primeiro-ministro e ordenou:

– Procura-me alguém que possa adivinhar os meus pensamentos.

O primeiro-ministro estava desconcertado, mas o rei era o rei. Que fazer? Nessa noite, o primeiro-ministro estava tão pesaroso que a filha lhe perguntou o que se passava.

– Nem podes imaginar, minha filha – compadeceu-se o homem. – O rei pediu-me que procure alguém capaz de lhe adivinhar os pensamentos. Não sei a quem posso recorrer.

– Não te preocupes, pai – disse a jovem. – Procurarei alguém. 

O primeiro-ministro suspirou de alívio. Oxalá a sua filha conseguisse encontrar alguém. 

Passou um par de dias. Qual não foi a surpresa do primeiro-ministro quando a sua filha lhe sugeriu como a pessoa ideal um pastor que mal sabia como se expressar, muito tosco e simplório.

– Este pastor é a pessoa de que precisas, pai – disse a jovem.

– Mas se parece ser um simplório – protestou o primeiro-ministro, atónito. – Não creio que saiba sequer o que são pensamentos, quando mais adivinhar os do rei!

Mas a jovem insistiu e o primeiro-ministro não contava com mais ninguém, pelo que conduziu o pastor à presença do monarca.

As expectativas eram muito grandes. Reunira-se a corte e o rei não queria ser defraudado. O primeiro-ministro estava aterrado. O que resultaria de tudo aquilo? Um rei que desejava que alguém lhe adivinhasse os pensamentos, um pastor que era incapaz de ver para lá do seu nariz, uma corte inteira à espera do espectáculo… O primeiro-ministro mal conseguia disfarçar a sua angústia.

Entrou no salão, acompanhado pelo pastor. Quando os cortesãos viram o pastor simplório, houve um burburinho generalizado, ainda que abafado para não despertar a fúria do monarca. O pastor foi conduzido a poucos metros do rei e colocou-se diante dele. Fez-se um enorme silêncio; a tensão era quase palpável, de tão intensa. Era a primeira vez que o pastor via um rei. Olhando-o de frente, o monarca levantou um dedo. O pastor, nem torpe nem preguiçoso, levantou então dois dedos. Mas, acto contínuo, o rei levantou três dedos. O pastor abanou energeticamente a cabeça em negação e quis fugir dali, mas a guarda não lho permitiu. Toda a assistência receava o pior. Quando o rei se irritava, era terrível. Mas, para surpresa geral, o monarca deu uma gargalhada e demonstrou a sua grande satisfação. Felicitou o primeiro-ministro por lhe ter trazido a pessoa ideal e ordenou que dessem ao pastor uma bolsa com abundantes moedas de ouro.

O pastor abandonou a corte. Se havia alguém estupefacto, era o primeiro-ministro. Não entendia nada. Tentando extrair alguma explicação ao monarca, perguntou:

– Que tal, senhor?

– Bem viste, meu primeiro-ministro – replicou o monarca, animado. – Fantástico, melhor era impossível. Quando levantei um dedo, estava a perguntar com os meus pensamentos se existia alguém mais poderoso do que eu, que me considero o mais poderoso dos monarcas. Então, ao levantar os dois dedos, o adivinho disse-me que Deus é mais poderoso do que eu. Levantando os três dedos, perguntei-lhe então se existia ainda alguém mais poderoso do que eu. Ele respondeu energeticamente que não. Leu magnificamente os meus pensamentos e, além disso, fez-me recordar de que sou o mais poderoso monarca, mas não tanto como Deus, naturalmente.

Nessa noite, o primeiro-ministro regressou a sua casa. Pelo caminho, encontrou-se com o pastor, que, encantado, contava e recontava as moedas da recompensa. O primeiro-ministro já tinha ouvido a explicação do rei sobre a conversa mantida com os dedos, mas agora queria ouvir a do pastor simplório.

– Foi muito fácil entender Sua Majestade – disse o pastor. – Muito fácil. Quando levantou um dedo, percebi que queria uma das minhas três ovelhas. Como é rei, eu, levantando dois dedos, ofereci-lhe duas. Mas será ganancioso, o rei! Ofereço-lhe duas das minhas ovelhas e ele levanta o terceiro dedo e pede-me as três. Isso era demasiado. Por isso, opus-me energeticamente, mas, com medo do castigo, tentei escapar.

O primeiro-ministro riu-se para consigo.

– O que não consigo entender – acrescentou o pastor – é porque me recompensou o rei depois de eu lhe ter recusado a terceira ovelha.

– Não te preocupes com isso – disse o primeiro-ministro. – Goza o teu dinheiro. Agora, poderás ter muitas ovelhas.
 
 
 
 
Tradicional (do Tibete)










(Conto colectado por Ramiro Calle e editado em "Contos Espirituais do Tibete", Albatroz, 2021.)













(Autor desconhecido)