sexta-feira, 26 de junho de 2020

Seis haikus veranis de Bashô (Parte III)


I.

Em Hoso Tôge, que fica no caminho de Tafu no Mine para Ryumon.

acima do voo da cotovia
deito-me no céu
desta passagem de montanha


II.

por sobre o arrozal
o som da água que corre - 
ó que delícia!


III.

Caminhando ao longo da estrada de Kiso, fiquei em Ôtsu e fui ver os pirilampos em Seta. 

pirilampos - 
na água dos arrozais
luas reflectidas


IV.

escutando a flauta
que ninguém toca
no Templo de Suma


V.

pirilampos - 
pétalas das cerejeiras de Yoshino
em frente dos meus olhos


VI.

Consolando o hospedeiro, Rakugo, pela morte de seu filho.

como é frágil
uma flor
no calor do verão!









Matsuo Bashô (1644 - 1694)












(Tradução e adaptação de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016.)
















("Pássaros e Flores da Primavera e do Verão", 
primeiro de um par de seis painéis de Kano Eino - 
Período Edo, 1603-1867)



segunda-feira, 8 de junho de 2020

O Mito Genesíaco do Império Japonês (segundo a tradição xintoísta)


Quando começaram a existir os céus e a terra, formaram-se as divindades invisíveis, que tinham nos céus o seu domicílio. A terra então não era mais do que uma coisa semelhante a uma gota de azeite, flutuando, movendo-se como se move a medusa, a alforreca.

Seguidamente, outros deuses se formaram, Izanaghi e Izanami, sua irmã, contando-se no número, aos quais todas as divindades entregaram uma lança milagrosa, conferindo-lhes a missão de irem consolidar a terra.

Izanaghi e Izanami colocaram-se então sobre a ponte flutuante dos céus - o arco-íris - e dali, baixando a lança, começaram a agitar a água salgada. Após, recolhendo a lança, dos pingos de água que caíam formou-se uma primeira ilha. Despediram-se dos céus e a ela desceram; nela celebraram suas núpcias.

Do consórcio, originaram-se as ilhas do Japão e provêm muitos deuses naturais. Um deles, o deus do fogo, mata acidentalmente sua mãe. Izanaghi corre aos infernos em procura da esposa, que lá vê, sem, contudo, poder salvá-la do lugar. Foge então, espavorido. Escapo, apressa-se a entregar-se às delícias de um banho purificador. Despe-se; de cada peça de vestuário, que tira do corpo e lança à terra, nasce uma divindade. Banhando-se, de cada um dos seus gestos nasce outra divindade; lavando o olho direito, nasce o deus da lua; lavando o nariz, nasce o deus dos mares.

Ora, aconteceu que o deus dos mares meteu-se a mortificar sua irmã, a deusa Amaterasu, desrespeitando-a. Tamanha foi a última afronta, que a deusa do sol, escandalizada, recolheu-se à gruta de rochedos que habitava, fechando a entrada com uma enorme pedra; assim se ocultou às vistas. Consequentemente, céus e terra ficaram às escuras.

Então, perante calamidade tão estupenda, da qual já iam derivando terríveis consequências, todas as divindades se reuniram em conselho, a fim de deliberar o que se havia de fazer. Resolveu-se por fim reunir junto da gruta muitos galos, os quais, pelo seu canto, que anuncia comummente a madrugada, seriam de bom agoiro. Ao mesmo tempo, fez-se um troféu de ofertas, incluindo um espelho de metal, que é o emblema do sol, um colar de jóias, plantas místicas e outras várias coisas. Por último, a deusa Ame-no-uzumé, enfeitada a capricho, pôs-se a dançar e a cantar ao pé da gruta, fazendo mil trejeitos; cerca, todos os deuses, em número de oitocentos miríades, desataram num coro de risadas...

Imagine-se o estrondo. Foi então que a deusa Amaterasu, surpreendida da risota, entreabriu um pouco a sua gruta e exclamou:

- Pensava eu que, pelo meu recolhimento, se achava tudo em trevas... Que acontece porém, para que se dance aqui e todos os deuses se divirtam?...

A multidão, apresentando-lhe as ofertas, respondeu-lhe que outra deusa, mais poderosa do que ela, ali se achava, o que dava motivo a tanto júbilo... Amaterasu, a quem a explicação mais intrigava, avançou um nadinha da gruta para fora, para ver. De pronto, um deus toma-lhe a mão e puxa-a para longe; outro estende uma corda de palha à entrada da gruta, para impedir a retirada; por este modo, de novo os céus e a terra japonesa foram iluminados pelo sol!...




(Obs: Ainda hoje, nas cerimónias xintoístas, estão presentes o espelho de metal, a corda de palha, as plantas místicas e todos os outros acessórios mencionados nesta lenda, primeiramente descrita no "Livro de Memórias" (Kojiki), há mais de 1200 anos.)





Wenceslau de Moraes (1854 - 1929) ¹












(in "O Bon-Odori em Tokushima", Livros de Bordo, 2018.)













(1) Nascido em Lisboa, este célebre oficial da Marinha portuguesa, professor e, sobretudo, escritor, é, juntamente com Camilo Pessanha, das personalidades nacionais a quem mais devemos o conhecimento e a divulgação da cultura e modos de vida orientais (no caso deste autor, dos japoneses). O equivalente lusitano, portanto, a Lefcádio Hearn, de quem aliás foi contemporâneo. 
Todas as suas obras oferecem pedaços do universo nipónico que tanto o encantou em vida, ao ponto de ter vivido pouco mais de vinte anos no território - vindo a falecer em Tokushima. Na cidade de Kobe, onde desempenhou funções de cônsul, ergue-se ainda hoje um monumento em sua justa homenagem. 









"Sondando os Mares com o Tenkei" (em recorte),
de Kobayashi Eitaku
(1843 - 1890)