terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Cinco haikus invernais de Bashô


I.

ouvindo a queda de granizo
como se este meu corpo
fosse uma velha árvore


II.

o temporal abate-se sobre a bananeira¹
e toda a noite ouço a chuva
cair no balde


III.

sozinho
na manhã nevada
mastigo salmão seco²


IV.

as pedras do rio ficaram à vista
e neste inverno glacial
até elas encolheram


V.

chega o vento gélido
e deita-se
com a criança abandonada




Matsuo Bashô (1644 - 1694)








(Tradução e adaptação de Joaquim M. Palma, in "O Eremita Viajante", Assírio & Alvim, 2016).







(1) Junto da cabana de Bashô esteve plantada uma bananeira. Foi graças a essa árvore, recebida de oferta, que Matsuo Kinsaku adoptou o pseudónimo que o celebraria ("Bashô" significa precisamente "bananeira"). Aquando do seu falecimento, junto do local de enterro repetiu-se o gesto. 


(2) Este haiku foi escrito com a seguinte nota, que o antecede: «Os ricos comem carne, os ambiciosos comem raízes. Eu sou apenas pobre». Note-se, ainda, que existe um provérbio chinês que diz o seguinte: «Aquele que consegue mastigar raízes, consegue fazer tudo». É a tal dizer, nitidamente, que Bashô faz referência no seu haiku.









(Retrato de Bashô por Hokusai - finais do séc. XVIII)



sábado, 17 de fevereiro de 2018

Seis breves poemas de Adonis


I.

Hoje o céu escreveu o seu poema
com tinta branca
Chamou-lhe neve


II. 

Uma rosa sai do seu leito
pega nas mãos da manhã
para esfregar os olhos


III.

Arco-íris?
Unidade do céu e da terra
entrançados numa só corda


IV.

Como é estranho este pacto
entre as vagas e a margem - 
a margem escreve a areia
as vagas apagam a escrita


V.

Para chegar à luz
tens de te apoiar na tua sombra


VI.

Não podes ser lanterna
se não levares a noite
às costas





Adonis (1930) ¹







(Tradução de Nuno Júdice in "O Arco-Íris do Instante", D.Quixote, Outubro de 2016)









(1) Adonis nasceu Ali Ahmad Said Esber, em 1930, na Síria. 
Nos finais da década de 50, frustrado com o firme conservadorismo das crenças e modos de vida no seu país, mudou-se para Beirute, no Líbano, onde viria a trabalhar na Shi'r, uma das revistas literárias mais emblemáticas do mundo árabe. Aí desenvolveu esforços no sentido de apoiar a produção jovem e de dar a conhecer a todas as gerações interessadas a poesia de autores ocidentais. Foi por esse intuito que se tornou o primeiro árabe a traduzir integralmente para a sua língua nativa as "Metamorfoses" de Ovídio. O pseudónimo adoptado surge nesse contexto de louvor a uma cultura que artisticamente tanto apreciava. 
Em 1985 exila-se em Paris, onde actualmente vive. Tem uma obra de mais de cinco dezenas de livros de poesia, além de trabalhos de tradução, crítica e ensaio. É justamente considerado uma das figuras mais proeminentes da literatura árabe, desde logo pelo seu movimento de ruptura em relação aos padrões artísticos pré-estabelecidos nessa parte do mundo, bem como pelo carácter reformador e extremamente original do seu pensamento e, claro, obra editada. O vincado modernismo pelo qual sempre pautou as suas produções é ainda celebrado nos mais diversos círculos da crítica competente. 
Em 2011 tornou-se o primeiro poeta árabe a receber o Prémio Goethe. Por diversas vezes foi apontado ao Nobel, mas o feliz anúncio tem tardado a chegar.







(Foto via CNN)