domingo, 13 de abril de 2025

ALÉM DE TUDO

 

O homem que é feliz e puro
E aprecia a sua própria companhia
Colhe o fruto da sua prática
E o fruto da sabedoria.

O homem que conhece a verdade
Nunca está insatisfeito com o mundo.
Pois ele só preenche o universo.

Assim como o elefante adora
As folhas da bosvélia,
Mas evita as folhas de nim,
O homem que a si se ama
Sempre menospreza os sentidos.

É difícil encontrar
Um homem sem desejos
Por aquilo que ainda não provou,
Ou que saboreia o mundo
Mas pelo mundo não se deixa tocar.

Neste mundo
Alguns anseiam pelo prazer,
Outros procuram liberdade;
Mas é difícil encontrar
Um homem que não os queira.

É ele grande em espírito.

É difícil encontrar
Um homem que tenha uma mente aberta,
Que não procure nem evite
Riqueza ou prazer,
Dever ou libertação,
Vida ou morte.

Não pretende que o mundo acabe,
Não se importa se continuar o seu rumo.
O que quer que aconteça a um homem assim,
Ele vive feliz –
Pois é veramente abençoado.

Agora que compreende,
É um homem realizado.
A sua mente é atraída para dentro.
Observa e escuta,
Toca, cheira e saboreia
E é feliz.

O que quer que faça é sem propósito.
Os seus sentidos foram serenados.
Os seus olhos são vazios.
Ele não possui desejo ou aversão.
Para ele, as águas do mundo
Já secaram todas!

Ele não dorme
Nem está acordado.
Nunca fecha ou abre
Os seus olhos.
Esteja onde estiver,
Está além de tudo.
Ele é livre.

E o homem que é livre
Vive sempre no coração.
Tal coração é sempre puro.
Não importa o que acontece,
Ele está além de qualquer desejo.

O que vê ou escuta ou toca,
O que cheira ou prova,
O que adquire,
Permanece livre.
Livre do esforço
E da quietude.

É ele, sem dúvida, grande em espírito.

Sem culpa ou elogio,
Raiva ou júbilo.
Ele nada dá,
Ele nada toma para si.
Ele nada quer,
Nada quer em absoluto.

Quem quer que se aproxime,
Uma mulher exalando paixão
Ou a própria Morte,
Ele não se permite abalar.
Permanece no coração.
Em verdade, é livre!

Para ele, não há diferença:
Homem ou mulher,
Sorte ou azar,
Alegria ou tristeza.
Não há diferença.
Ele permanece sereno.

O mundo não mais o envolve.
Chegou além das amarras
Da natureza humana.
Sem compaixão
Ou desejo de magoar,
Sem orgulho ou humildade.
Nada o perturba,
Nada o surpreende.

Por ser livre,
Não anseia nem despreza
As coisas do mundo.
Recebe-as tal como lhe chegam.
A sua mente vive desapegada.

A sua mente está vazia.
Ele não está preocupado com a meditação
Ou a ausência de meditação,
Ou a luta entre bem e mal.
Só,
Está além de tudo.

Não existe um “eu”,
Não existe um “meu”,
Ele sabe que nada há.
Todos os seus desejos interiores desvaneceram-se.
O que quer que faça,
Ele nada faz.

A sua mente deixou de trabalhar!
Simplesmente diluiu-se…
E com ela
Os sonhos, as ilusões, a dormência.
Não há nome
Para aquilo em que se tornou.



Ashtavakra (? - ?)












(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)










(The Enlightened Journey..., de Archanain)




quarta-feira, 5 de junho de 2024

ESQUECE-TE DE TUDO


Meu filho,
Podes ler e discutir as escrituras
O quanto quiseres:
Até que de tudo te esqueças
Nunca viverás no coração.

És sábio.
Brincas, trabalhas e meditas.
Mas ainda a tua mente deseja
Aquilo que está além de tudo,
Onde todos os desejos desvanecem.

O esforço é a raiz do sofrimento.
Quem compreende isto?
Apenas quando fores abençoado
Com a realização deste ensinamento
Encontrarás a liberdade.

Quem é mais preguiçoso que o mestre?
Até pestanejar lhe custa!
Mas somente ele é feliz,
Mais ninguém.

Ao dar atenção a uma coisa,
Descuras outras...
Quando a mente pára
De colocar coisa contra coisa
Deixa de desejar o prazer,
Deixa de ansiar por prosperidade,
Pelos deveres religiosos ou pela salvação.

Ansiando o prazer dos sentidos,
Apegas-te e sofres.
Recusando-os,
Aprendes o desapego.
Mas se nada desejares
E nada recusares
Apego e desapego não te prenderão.

Quando vives sem nada discriminar,
O desejo desponta.
Quando o desejo persiste,
Sentimentos de preferência despontam,
Sensações de “gosto” e “não gosto”.
Elas são a raiz e os ramos do mundo.

Da actividade vem o desejo,
Da renúncia vem a aversão.
Mas o homem sábio é uma criança,
Ele nunca coloca uma coisa contra a outra.
É verdade, sim,
Ele é uma criança!

Se desejas o mundo
Podes tentar renunciá-lo,
De modo a escapares à tristeza.
Em vez disto, renuncia ao desejo!
E então ficarás livre de tristeza,
O mundo não mais te incomodará.

Se desejas libertação
Mas ainda dizes “meu!”,
Se sentes que és o corpo,
Não és um homem sábio ou um buscador.
És somente um homem que sofre.

Deixa que Hari te ensine,
Ou Brahma, nascido do lótus,
Ou o próprio Shiva. (*)
A menos que de tudo te esqueças,
Nunca viverás no coração.




Ashtavakra (? - ?)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)










(*) O autor refere a sagrada trindade do hinduísmo, a Trimurti, em que Brahma é o primeiro deus, representando, entre outras coisas, a força criadora do universo. Seguem-se Hari (ou Vishnu), aquele que sustenta o universo e, por fim, Shiva - o "destruidor" ou "transformador", aquele que extingue para que a renovação, no seio do universo, possa acontecer.  













"Tree Pose",
Christian Yong



segunda-feira, 20 de maio de 2024

O ESPAÇO DA CONSCIÊNCIA (Parte 2)

 

És o oceano sem fim
Onde mundos como ondas
A seu ritmo se erguem e tombam.
Nada tens a ganhar,
Nada tens a perder.

Filho:
És consciência pura,
Nada menos que isso.
Tu e o mundo são um só.
Quem és tu, então, para pensar
Que o consegues agarrar
Ou dele te libertares?
Como poderias?

És o espaço limpo da consciência,
Puro e sereno,
No qual não existe nascimento,
Nem acção,
Nem um “eu”.
Ambos são um e o mesmo,
Não podes sofrer mudança ou morrer.

Estás no que quer que vejas,
Apenas tu estás.
Assim como as braceletes, as pulseiras
E as tornozeleiras dançantes
São feitas do mesmo ouro.

“Não sou isto”,
“Eu sou Ele”.
Desiste de tais distinções.
Sabe que tudo é o Ser.
Liberta-te de todo o propósito.
E sê feliz.

O mundo apenas emerge da ignorância.
Somente tu és real.
Nada há,
Nem Deus,
Separado de ti.

És consciência pura;
O mundo uma ilusão,
Nada mais.
Quando compreenderes isto em pleno,
O desejo irá desaparecer.
Encontrarás paz,
Pois, de verdade,
Nada há!

No oceano de ser
Há apenas um.
Houve e haverá
Somente um.
Já és realizado.
Como podes ser apegado ou livre?
Onde quer que vás,
Sê feliz.

Nunca aborreças a mente
Com sim ou não.
Fica quieto.
És a consciência em si.
Vive na felicidade
Da tua própria natureza,
Que é a felicidade em si.

Qual a razão de pensar?
De uma vez por todas
Abdica da meditação,
Nada guardes na tua mente.
És o Ser,
És livre.



Ashtavakra (? - ?)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











"Embracing Sunset Serenade",
de Olga Volna




quarta-feira, 24 de abril de 2024

O ESPAÇO DA CONSCIÊNCIA (Parte 1)


Aquele que é puro de coração
Está destinado a realizar-se,
Seja qual for a via que lhe ensinaram.
O homem mundano procura a vida inteira,
E ainda permanece confuso.

Desapegado dos sentidos,
És livre.
Apega-te e ficarás preso.
Quando isto é compreendido,
Poderás viver como melhor entenderes.

Quando isto é compreendido,
Aquele que é inteligente e ocupado
E cheio de palavras finas
Fica silencioso.
Ele nada faz,
Ele permanece quieto.
Não admira
Que aqueles que desejam desfrutar do mundo
Afastem este entendimento!

Não és o teu corpo.
O teu corpo não é quem és.
Não és aquele que faz.
Não és aquele que desfruta.
És consciência pura,
Testemunha de todas as coisas.
És, sem expectativa:
Livre.
Onde quer que vás,
Sê feliz!

O desejo e a aversão são domínio da mente.
A mente nunca é tua.
Estás livre do seu tumulto.
És a consciência em si,
Imutável.
Onde quer que vás,
Sê feliz.

Observa!
O Ser está em todas as criaturas
E todas as criaturas estão no Ser.
Entende que és livre,
Livre do “eu”,
Livre do “meu”.
Sê feliz.

Em ti, mundos despontam
Como as ondas do mar.
É verdade!
És a consciência em si.
Então, liberta-te
Da febre do mundo.

Tem fé, meu Filho, tem fé.
Não fiques confuso.
Pois estás além de todas as coisas,
O coração de todo o conhecimento.
És o Ser,
És Deus.

O corpo está limitado
Pela sua natureza.
Chega,
Demora-se por momentos
E parte.
Mas o Ser não chega nem parte.
Então, porquê lamentar o corpo?

Se o corpo durasse até ao fim do tempo,
Ou desaparecesse hoje mesmo,
Que ganharias ou perdias tu?

És consciência pura.






Ashtavakra (? - ?)












(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(autor desconhecido)



sexta-feira, 1 de março de 2024

O TOLO

 

Por natureza, a minha mente é vazia.
Mesmo dormindo, permaneço desperto.
Penso em coisas sem pensar.
Todas as impressões que tinha do mundo
Dissolveram-se.

Os meus desejos desapareceram.
Que me importa o dinheiro,
Os sentidos – esses ladrões –
Ou amizades, conhecimento, os livros sagrados?

Libertação,
Apego,
O que são para mim?
Que me importa a liberdade?
Conheci Deus,
O Eu infinito,
A testemunha de todas as coisas.

Por fora, um tolo;
Por dentro, livre de pensamentos.
Faço o que bem entendo,
E apenas aqueles como eu
Compreendem meus modos.





Ashtavakra (? - ?)














(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











"Gaura Nitai", 
de Syamarani Dasi



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

FELICIDADE



Mesmo que nada tenhas,
É difícil descobrir o contentamento
Que advém da renúncia.
Eu nada aceito,
Eu nada rejeito
E sou feliz.

O corpo estremece,
A língua hesita,
A mente está cansada.
Abandonando-os,
Persigo alegremente o meu propósito.

Sabendo que nada faço,
Faz-se o que tiver de ser feito,
E sou feliz.

Apegado ao seu corpo,
Aquele que busca insiste em esforçar-se
Ou sentar-se muito quieto.
Mas eu não mais suponho
Que seja meu o corpo,
Ou que não o seja.
E sou feliz.

Dormindo, sentado, caminhando
Nada de bom ou mau me acontece.
Durmo, sento-me, caminho
E sou feliz.

Em esforço ou em repouso,
Nada é ganho ou perdido.
Abandonei a alegria de ganhar
E a tristeza de perder.
E sou feliz.

Os prazeres vêm e vão.
Quantas vezes observei a sua inconstância!
Abandonei o bom e o mau,
E agora sou feliz.





Ashtavakra (? - ?)















(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)












("Tree of Happiness", por Leon Devenice)






quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

REALIZAÇÃO


Primeiro, abdiquei da acção;
Depois, das palavras vãs;
Por fim, do pensamento.
Agora, estou aqui.

Libertando a mente de distrações,
E só nisso concentrado,
Apaguei sons e todos os sentidos,
E estou aqui.

A meditação é necessária
Apenas quando a mente se distrai
Na falsa imaginação.
Sabendo disto,
Eu estou aqui.

Sem alegria ou tristeza,
A nada me apegando e nada rejeitando,
Oh, Mestre, eu estou aqui.

Que me importa
Se observo ou negligencio
As quatro fases da vida¹?
A meditação,
O controlo da mente,
Não passam de meras distrações!
Agora, eu estou aqui.

O fazer e o não fazer
Despontam da ignorância.
Compreendendo isto profundamente,
Eu estou aqui.

Pensar no que reside
Além do pensamento
É ainda um pensamento.
De pensar eu desisti,
Eu estou aqui.

Quem realizar esta verdade
Realiza a sua própria natureza
E torna-se, em verdade, realizado.





Ashtavakra (? - ?)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(1) Nas antigas tradições orientais, as quatro fases da vida dum indivíduo, asrama, eram as seguintes: juventude e instrução, cuidar do lar, retiro na floresta e renúncia. 













(Autora: Swati Pasari)