quarta-feira, 5 de junho de 2024

ESQUECE-TE DE TUDO


Meu filho,
Podes ler e discutir as escrituras
O quanto quiseres:
Até que de tudo te esqueças
Nunca viverás no coração.

És sábio.
Brincas, trabalhas e meditas.
Mas ainda a tua mente deseja
Aquilo que está além de tudo,
Onde todos os desejos desvanecem.

O esforço é a raiz do sofrimento.
Quem compreende isto?
Apenas quando fores abençoado
Com a realização deste ensinamento
Encontrarás a liberdade.

Quem é mais preguiçoso que o mestre?
Até pestanejar lhe custa!
Mas somente ele é feliz,
Mais ninguém.

Ao dar atenção a uma coisa,
Descuras outras...
Quando a mente pára
De colocar coisa contra coisa
Deixa de desejar o prazer,
Deixa de ansiar por prosperidade,
Pelos deveres religiosos ou pela salvação.

Ansiando o prazer dos sentidos,
Apegas-te e sofres.
Recusando-os,
Aprendes o desapego.
Mas se nada desejares
E nada recusares
Apego e desapego não te prenderão.

Quando vives sem nada discriminar,
O desejo desponta.
Quando o desejo persiste,
Sentimentos de preferência despontam,
Sensações de “gosto” e “não gosto”.
Elas são a raiz e os ramos do mundo.

Da actividade vem o desejo,
Da renúncia vem a aversão.
Mas o homem sábio é uma criança,
Ele nunca coloca uma coisa contra a outra.
É verdade, sim,
Ele é uma criança!

Se desejas o mundo
Podes tentar renunciá-lo,
De modo a escapares à tristeza.
Em vez disto, renuncia ao desejo!
E então ficarás livre de tristeza,
O mundo não mais te incomodará.

Se desejas libertação
Mas ainda dizes “meu!”,
Se sentes que és o corpo,
Não és um homem sábio ou um buscador.
És somente um homem que sofre.

Deixa que Hari te ensine,
Ou Brahma, nascido do lótus,
Ou o próprio Shiva. (*)
A menos que de tudo te esqueças,
Nunca viverás no coração.




Ashtavakra (? - ?)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)










(*) O autor refere a sagrada trindade do hinduísmo, a Trimurti, em que Brahma é o primeiro deus, representando, entre outras coisas, a força criadora do universo. Seguem-se Hari (ou Vishnu), aquele que sustenta o universo e, por fim, Shiva - o "destruidor" ou "transformador", aquele que extingue para que a renovação, no seio do universo, possa acontecer.  













"Tree Pose",
Christian Yong



segunda-feira, 20 de maio de 2024

O ESPAÇO DA CONSCIÊNCIA (Parte 2)

 

És o oceano sem fim
Onde mundos como ondas
A seu ritmo se erguem e tombam.
Nada tens a ganhar,
Nada tens a perder.

Filho:
És consciência pura,
Nada menos que isso.
Tu e o mundo são um só.
Quem és tu, então, para pensar
Que o consegues agarrar
Ou dele te libertares?
Como poderias?

És o espaço limpo da consciência,
Puro e sereno,
No qual não existe nascimento,
Nem acção,
Nem um “eu”.
Ambos são um e o mesmo,
Não podes sofrer mudança ou morrer.

Estás no que quer que vejas,
Apenas tu estás.
Assim como as braceletes, as pulseiras
E as tornozeleiras dançantes
São feitas do mesmo ouro.

“Não sou isto”,
“Eu sou Ele”.
Desiste de tais distinções.
Sabe que tudo é o Ser.
Liberta-te de todo o propósito.
E sê feliz.

O mundo apenas emerge da ignorância.
Somente tu és real.
Nada há,
Nem Deus,
Separado de ti.

És consciência pura;
O mundo uma ilusão,
Nada mais.
Quando compreenderes isto em pleno,
O desejo irá desaparecer.
Encontrarás paz,
Pois, de verdade,
Nada há!

No oceano de ser
Há apenas um.
Houve e haverá
Somente um.
Já és realizado.
Como podes ser apegado ou livre?
Onde quer que vás,
Sê feliz.

Nunca aborreças a mente
Com sim ou não.
Fica quieto.
És a consciência em si.
Vive na felicidade
Da tua própria natureza,
Que é a felicidade em si.

Qual a razão de pensar?
De uma vez por todas
Abdica da meditação,
Nada guardes na tua mente.
És o Ser,
És livre.



Ashtavakra (? - ?)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











"Embracing Sunset Serenade",
de Olga Volna




quarta-feira, 24 de abril de 2024

O ESPAÇO DA CONSCIÊNCIA (Parte 1)


Aquele que é puro de coração
Está destinado a realizar-se,
Seja qual for a via que lhe ensinaram.
O homem mundano procura a vida inteira,
E ainda permanece confuso.

Desapegado dos sentidos,
És livre.
Apega-te e ficarás preso.
Quando isto é compreendido,
Poderás viver como melhor entenderes.

Quando isto é compreendido,
Aquele que é inteligente e ocupado
E cheio de palavras finas
Fica silencioso.
Ele nada faz,
Ele permanece quieto.
Não admira
Que aqueles que desejam desfrutar do mundo
Afastem este entendimento!

Não és o teu corpo.
O teu corpo não é quem és.
Não és aquele que faz.
Não és aquele que desfruta.
És consciência pura,
Testemunha de todas as coisas.
És, sem expectativa:
Livre.
Onde quer que vás,
Sê feliz!

O desejo e a aversão são domínio da mente.
A mente nunca é tua.
Estás livre do seu tumulto.
És a consciência em si,
Imutável.
Onde quer que vás,
Sê feliz.

Observa!
O Ser está em todas as criaturas
E todas as criaturas estão no Ser.
Entende que és livre,
Livre do “eu”,
Livre do “meu”.
Sê feliz.

Em ti, mundos despontam
Como as ondas do mar.
É verdade!
És a consciência em si.
Então, liberta-te
Da febre do mundo.

Tem fé, meu Filho, tem fé.
Não fiques confuso.
Pois estás além de todas as coisas,
O coração de todo o conhecimento.
És o Ser,
És Deus.

O corpo está limitado
Pela sua natureza.
Chega,
Demora-se por momentos
E parte.
Mas o Ser não chega nem parte.
Então, porquê lamentar o corpo?

Se o corpo durasse até ao fim do tempo,
Ou desaparecesse hoje mesmo,
Que ganharias ou perdias tu?

És consciência pura.






Ashtavakra (? - ?)












(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(autor desconhecido)



sexta-feira, 1 de março de 2024

O TOLO

 

Por natureza, a minha mente é vazia.
Mesmo dormindo, permaneço desperto.
Penso em coisas sem pensar.
Todas as impressões que tinha do mundo
Dissolveram-se.

Os meus desejos desapareceram.
Que me importa o dinheiro,
Os sentidos – esses ladrões –
Ou amizades, conhecimento, os livros sagrados?

Libertação,
Apego,
O que são para mim?
Que me importa a liberdade?
Conheci Deus,
O Eu infinito,
A testemunha de todas as coisas.

Por fora, um tolo;
Por dentro, livre de pensamentos.
Faço o que bem entendo,
E apenas aqueles como eu
Compreendem meus modos.





Ashtavakra (? - ?)














(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











"Gaura Nitai", 
de Syamarani Dasi



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

FELICIDADE



Mesmo que nada tenhas,
É difícil descobrir o contentamento
Que advém da renúncia.
Eu nada aceito,
Eu nada rejeito
E sou feliz.

O corpo estremece,
A língua hesita,
A mente está cansada.
Abandonando-os,
Persigo alegremente o meu propósito.

Sabendo que nada faço,
Faz-se o que tiver de ser feito,
E sou feliz.

Apegado ao seu corpo,
Aquele que busca insiste em esforçar-se
Ou sentar-se muito quieto.
Mas eu não mais suponho
Que seja meu o corpo,
Ou que não o seja.
E sou feliz.

Dormindo, sentado, caminhando
Nada de bom ou mau me acontece.
Durmo, sento-me, caminho
E sou feliz.

Em esforço ou em repouso,
Nada é ganho ou perdido.
Abandonei a alegria de ganhar
E a tristeza de perder.
E sou feliz.

Os prazeres vêm e vão.
Quantas vezes observei a sua inconstância!
Abandonei o bom e o mau,
E agora sou feliz.





Ashtavakra (? - ?)















(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)












("Tree of Happiness", por Leon Devenice)






quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

REALIZAÇÃO


Primeiro, abdiquei da acção;
Depois, das palavras vãs;
Por fim, do pensamento.
Agora, estou aqui.

Libertando a mente de distrações,
E só nisso concentrado,
Apaguei sons e todos os sentidos,
E estou aqui.

A meditação é necessária
Apenas quando a mente se distrai
Na falsa imaginação.
Sabendo disto,
Eu estou aqui.

Sem alegria ou tristeza,
A nada me apegando e nada rejeitando,
Oh, Mestre, eu estou aqui.

Que me importa
Se observo ou negligencio
As quatro fases da vida¹?
A meditação,
O controlo da mente,
Não passam de meras distrações!
Agora, eu estou aqui.

O fazer e o não fazer
Despontam da ignorância.
Compreendendo isto profundamente,
Eu estou aqui.

Pensar no que reside
Além do pensamento
É ainda um pensamento.
De pensar eu desisti,
Eu estou aqui.

Quem realizar esta verdade
Realiza a sua própria natureza
E torna-se, em verdade, realizado.





Ashtavakra (? - ?)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(1) Nas antigas tradições orientais, as quatro fases da vida dum indivíduo, asrama, eram as seguintes: juventude e instrução, cuidar do lar, retiro na floresta e renúncia. 













(Autora: Swati Pasari)






quinta-feira, 2 de novembro de 2023

SERENIDADE


Todas as coisas nascem,
Modificam-se
E morrem.
É esta a sua natureza.

Quando sabes que assim é,
Nada te perturba,
Nada te magoa.
Tornas-te sereno.
É fácil.

Deus criou todas as coisas;
Nada mais há se não Deus.
Quando sabes que assim é,
O desejo desaparece.
A nada apegado,
Tornas-te sereno.

Mais cedo ou mais tarde,
A sorte ou o infortúnio
Poderão cair sobre ti.
Quando sabes que assim é,
Nada desejas,
Nada lamentas.
Subjugando os sentidos,
És feliz.

O que quer que faças
Gera alegria ou tristeza,
Vida ou morte.
Quando sabes que assim é,
Podes agir livremente,
Sem apego.
O que haverá para alcançar?

Toda a tristeza provém do medo,
E de mais lado nenhum.
Quando sabes que assim é,
Dela te libertas,
E o desejo desaparece.
Tornas-te feliz
E sereno.

“Eu não sou o corpo,
Nem é o corpo meu.
Sou consciência em si.”
Quando sabes que assim é,
Não guardas registo
Do que fizeste
Ou deixaste por fazer.
Tornas-te um,
Perfeito e indivisível.

“Estou em todas as coisas,
De Brahma¹ a um filamento de erva.”
Quando sabes que assim é,
Não tens um pensamento
Para o sucesso ou o fracasso
Ou para a inconstância da mente.
És puro,
És sereno.

O mundo, e todas as suas maravilhas,
Nada é.
Quando compreendes isto,
O desejo desvanece,
Pois és consciência em si.
Quando sabes, no teu coração,
Que nada há,
És serenidade.







Ashtavakra (? - ?)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Thomas Byrom in "The Heart Of Awareness - A Translation of the Ashtavakra Gita", Shambhala Dragon Editions, 2001.)











(1) Brahma é o primeiro deus da sagrada trindade do hinduísmo, a Trimurti, seguido de Vishnu e Shiva. Originalmente dotado de cinco cabeças e oito braços, representa a força criadora do Universo. À semelhança da noção católica de "Deus", Brahma é visto como o "Criador" por excelência, senhor de todo o conhecimento. Uma das possíveis traduções do seu nome é "Realidade Última", embora sobre este tema as opiniões sejam bastante divergentes.
Iconograficamente é representado por quatro cabeças, uma por cada Veda (os livros sagrados do hinduísmo), e em quatro dos seus oito braços ampara um rosário, simbolizando o tempo, um recipiente com água, uma espécie de colher e os sagrados textos dos Vedas.
Apesar de num passado remoto ter gozado de uma enorme popularidade, com o dobrar dos séculos foi perdendo-a para as outras divindades da mesma trindade. Restam actualmente poucos templos em sua honra. O mais emblemático situa-se em Pushkar. 










“Evening Stillness", John Kenward