terça-feira, 20 de abril de 2021

O REI E O PASTOR

 

Era uma vez um rei que começara a questionar-se se alguém teria a capacidade de adivinhar o que ele pensava. Nunca se perguntara se era ou não possível a leitura do pensamento, mas, nas últimas semanas, não conseguia deixar de reflectir sobre isso. Poderá alguém ler os meus pensamentos? Existirá alguém capaz de adivinhar aquilo que penso? E tanto assim era que o monarca começou a fazer testes relativamente às pessoas que lhe eram mais próximas. 

Foram muitos os que tentaram, mas fracassaram rotundamente. Bastou que assim fosse para o rei se empenhasse ainda mais em encontrar alguém capaz de se ligar aos seus pensamentos. 

Chamou o seu primeiro-ministro e ordenou:

– Procura-me alguém que possa adivinhar os meus pensamentos.

O primeiro-ministro estava desconcertado, mas o rei era o rei. Que fazer? Nessa noite, o primeiro-ministro estava tão pesaroso que a filha lhe perguntou o que se passava.

– Nem podes imaginar, minha filha – compadeceu-se o homem. – O rei pediu-me que procure alguém capaz de lhe adivinhar os pensamentos. Não sei a quem posso recorrer.

– Não te preocupes, pai – disse a jovem. – Procurarei alguém. 

O primeiro-ministro suspirou de alívio. Oxalá a sua filha conseguisse encontrar alguém. 

Passou um par de dias. Qual não foi a surpresa do primeiro-ministro quando a sua filha lhe sugeriu como a pessoa ideal um pastor que mal sabia como se expressar, muito tosco e simplório.

– Este pastor é a pessoa de que precisas, pai – disse a jovem.

– Mas se parece ser um simplório – protestou o primeiro-ministro, atónito. – Não creio que saiba sequer o que são pensamentos, quando mais adivinhar os do rei!

Mas a jovem insistiu e o primeiro-ministro não contava com mais ninguém, pelo que conduziu o pastor à presença do monarca.

As expectativas eram muito grandes. Reunira-se a corte e o rei não queria ser defraudado. O primeiro-ministro estava aterrado. O que resultaria de tudo aquilo? Um rei que desejava que alguém lhe adivinhasse os pensamentos, um pastor que era incapaz de ver para lá do seu nariz, uma corte inteira à espera do espectáculo… O primeiro-ministro mal conseguia disfarçar a sua angústia.

Entrou no salão, acompanhado pelo pastor. Quando os cortesãos viram o pastor simplório, houve um burburinho generalizado, ainda que abafado para não despertar a fúria do monarca. O pastor foi conduzido a poucos metros do rei e colocou-se diante dele. Fez-se um enorme silêncio; a tensão era quase palpável, de tão intensa. Era a primeira vez que o pastor via um rei. Olhando-o de frente, o monarca levantou um dedo. O pastor, nem torpe nem preguiçoso, levantou então dois dedos. Mas, acto contínuo, o rei levantou três dedos. O pastor abanou energeticamente a cabeça em negação e quis fugir dali, mas a guarda não lho permitiu. Toda a assistência receava o pior. Quando o rei se irritava, era terrível. Mas, para surpresa geral, o monarca deu uma gargalhada e demonstrou a sua grande satisfação. Felicitou o primeiro-ministro por lhe ter trazido a pessoa ideal e ordenou que dessem ao pastor uma bolsa com abundantes moedas de ouro.

O pastor abandonou a corte. Se havia alguém estupefacto, era o primeiro-ministro. Não entendia nada. Tentando extrair alguma explicação ao monarca, perguntou:

– Que tal, senhor?

– Bem viste, meu primeiro-ministro – replicou o monarca, animado. – Fantástico, melhor era impossível. Quando levantei um dedo, estava a perguntar com os meus pensamentos se existia alguém mais poderoso do que eu, que me considero o mais poderoso dos monarcas. Então, ao levantar os dois dedos, o adivinho disse-me que Deus é mais poderoso do que eu. Levantando os três dedos, perguntei-lhe então se existia ainda alguém mais poderoso do que eu. Ele respondeu energeticamente que não. Leu magnificamente os meus pensamentos e, além disso, fez-me recordar de que sou o mais poderoso monarca, mas não tanto como Deus, naturalmente.

Nessa noite, o primeiro-ministro regressou a sua casa. Pelo caminho, encontrou-se com o pastor, que, encantado, contava e recontava as moedas da recompensa. O primeiro-ministro já tinha ouvido a explicação do rei sobre a conversa mantida com os dedos, mas agora queria ouvir a do pastor simplório.

– Foi muito fácil entender Sua Majestade – disse o pastor. – Muito fácil. Quando levantou um dedo, percebi que queria uma das minhas três ovelhas. Como é rei, eu, levantando dois dedos, ofereci-lhe duas. Mas será ganancioso, o rei! Ofereço-lhe duas das minhas ovelhas e ele levanta o terceiro dedo e pede-me as três. Isso era demasiado. Por isso, opus-me energeticamente, mas, com medo do castigo, tentei escapar.

O primeiro-ministro riu-se para consigo.

– O que não consigo entender – acrescentou o pastor – é porque me recompensou o rei depois de eu lhe ter recusado a terceira ovelha.

– Não te preocupes com isso – disse o primeiro-ministro. – Goza o teu dinheiro. Agora, poderás ter muitas ovelhas.
 
 
 
 
Tradicional (do Tibete)










(Conto colectado por Ramiro Calle e editado em "Contos Espirituais do Tibete", Albatroz, 2021.)













(Autor desconhecido)


terça-feira, 6 de abril de 2021

Dois poemas de Du Fu em tempo de guerra - Parte II

 
I. Com a neve


nos campos de batalha agonizam as almas dos caídos
aflito e só, o velho balbucia por perto
e ao crepúsculo, numa confusão de nuvens baixas
a neve subitamente forte começa a cair em turbilhão com o 
          [vento
a minha jarra de vinho está vazia e abandonada
na frigideira nada mais que a lembrança do lume
das inúmeras regiões nenhuma notícia chega
sentado, consternado, assim escrevo no vazio




II. De regresso do norte


desde que caí na poeira dos bárbaros
até ao meu regresso, os cabelos ficaram todos brancos
passou-se apenas um ano até voltar à minha cabana em 
          [palha
encontrei a minha mulher com a roupa toda remendada
os seus lamentos misturavam-se com o som do vento nos 
          [pinheiros
os nossos soluços misturavam-se ao som da ribeira
o meu filho que toda a vida acarinhei
ficou com uma expressão branca de neve
ao olhar o pai vira as costas e chora
está todo sujo e descalço
na cama os dois filhos mais novos
as suas roupas remendadas e aumentadas mal cobrem as 
          [pernas
os desenhos do mar e das ondas estão rasgados
os velhos bordados a desfazerem-se
o deus do mar e a fénix púrpura
no seu vestuário reduzido estão ao contrário
tive uma má sensação
mas então lembrei-me de que no saco de viagem trazia 
          [tecidos
para vos proteger do frio que vos faz tremer
de uma bolsa tiro presentes para a minha mulher
mostro-lhe também um creme e tintas
o seu rosto emagrecido ganha nova cor
os meus filhos vão logo pentear-se
imitando a mãe, nenhum detalhe lhes escapa
com a maquilhagem esborratam as mãos
e espalham-na na cara
desajeitadamente desenham sobrancelhas enormes
por ter regressado são e salvo para junto dos meus
até esqueço a fome e a sede
pendurando-se interrogam-me e puxam-me a barba, como 
          [repreendê-los?
perguntam-me pelos maus tratos que sofri enquanto estive
          [cativo dos rebeldes
aceito com alegria esta algazarra que me rompe os ouvidos






Du Fu (712 - 770)












(Versões de Manuel Silva-Terra in "Tu Fu - Entre Céu e Terra", Ed. Licorne.)



















(Detalhe de "Dezoito Canções Duma Flauta Nómada: A História da Senhora Wenji",
autor desconhecido, princípios do século XV)