terça-feira, 6 de abril de 2021

Dois poemas de Du Fu em tempo de guerra - Parte II

 
I. Com a neve


nos campos de batalha agonizam as almas dos caídos
aflito e só, o velho balbucia por perto
e ao crepúsculo, numa confusão de nuvens baixas
a neve subitamente forte começa a cair em turbilhão com o 
          [vento
a minha jarra de vinho está vazia e abandonada
na frigideira nada mais que a lembrança do lume
das inúmeras regiões nenhuma notícia chega
sentado, consternado, assim escrevo no vazio




II. De regresso do norte


desde que caí na poeira dos bárbaros
até ao meu regresso, os cabelos ficaram todos brancos
passou-se apenas um ano até voltar à minha cabana em 
          [palha
encontrei a minha mulher com a roupa toda remendada
os seus lamentos misturavam-se com o som do vento nos 
          [pinheiros
os nossos soluços misturavam-se ao som da ribeira
o meu filho que toda a vida acarinhei
ficou com uma expressão branca de neve
ao olhar o pai vira as costas e chora
está todo sujo e descalço
na cama os dois filhos mais novos
as suas roupas remendadas e aumentadas mal cobrem as 
          [pernas
os desenhos do mar e das ondas estão rasgados
os velhos bordados a desfazerem-se
o deus do mar e a fénix púrpura
no seu vestuário reduzido estão ao contrário
tive uma má sensação
mas então lembrei-me de que no saco de viagem trazia 
          [tecidos
para vos proteger do frio que vos faz tremer
de uma bolsa tiro presentes para a minha mulher
mostro-lhe também um creme e tintas
o seu rosto emagrecido ganha nova cor
os meus filhos vão logo pentear-se
imitando a mãe, nenhum detalhe lhes escapa
com a maquilhagem esborratam as mãos
e espalham-na na cara
desajeitadamente desenham sobrancelhas enormes
por ter regressado são e salvo para junto dos meus
até esqueço a fome e a sede
pendurando-se interrogam-me e puxam-me a barba, como 
          [repreendê-los?
perguntam-me pelos maus tratos que sofri enquanto estive
          [cativo dos rebeldes
aceito com alegria esta algazarra que me rompe os ouvidos






Du Fu (712 - 770)












(Versões de Manuel Silva-Terra in "Tu Fu - Entre Céu e Terra", Ed. Licorne.)



















(Detalhe de "Dezoito Canções Duma Flauta Nómada: A História da Senhora Wenji",
autor desconhecido, princípios do século XV)



2 comentários:

  1. Uma epopéia de sofrimentos... não encontrei sua uma crítica sua... toda a guerra só traz fome, sofrimento e dor...

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  2. Não creio que me compita criticar, apenas mostrar, revelar - assim como o autor revelou aquilo que viveu numa época deveras perturbada. O mais será óbvio: a guerra é um flagelo imenso. Mas, não obstante os exemplos do passado, ainda persiste, ainda há quem a alimente em benefício próprio.
    Grato pela visita.
    Até breve.

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