I. Indo ou vindo?
A ave migratória
não deixa rasto,
nem de guia necessita.
II. Zazen (1)
A lua reflecte-se
nas águas serenas:
até as ondas, quebrando-se,
espelham a sua luz.
Assim a mente silenciosa.
III. Prodigiosa mente-nirvana (2)
Porque as flores que brotam
no nosso lar de origem
são eternas,
mesmo com o suceder das primaveras
as suas cores jamais se desvanecerão.
IV. Impermanência
A que poderei eu
comparar o mundo?
Ao luar reflectido
em gotas de orvalho,
agitando-se num gerânio.
Eihei Dogen (1200 - 1253) (*)
(Tradução e adaptação de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa elaborada por Steven Heine - "The Zen Poetry of Dogen: Verses from the Mountain of Eternal Peace", 1997)
(1) Zazen: Prática do budismo zen que consiste essencialmente numa meditação sem foco em concreto e de imobilidade corporal absoluta, por forma a promover o relaxamento e a aquietação do fluxo mental do ser. Este modo de "simplesmente sentar" é encarado nesta filosofia como uma via extremamente válida para se alcançar o estado de iluminação, o satori, dado que estimula o desapego e a auto-vigilância naquele que o praticar, tornando-o assim um ser mais alerta e consciente.
(2) Nirvana: O mesmo que satori, a suprema transcendência do ego (a falsa identidade do ser) e do mundo da matéria - nos quais se inclui, como consequência, o desapego dos sentidos, emoções e pensamentos. Um estado superior da evolução humana, por outras palavras.
(*) Dogen foi um mestre da vertente zen do budismo e um poeta de excelência.
Nascido em Quioto, Japão, no seio de uma família nobre, cedo experimentou as cruas ocorrências da via material. Órfão desde tenra idade, aproveitou do melhor modo o impulso do profundo abalo emocional que sobre ele se abatera, e com apenas treze anos entra no mosteiro onde será ordenado monge budista.
O seu carácter indagador levou-o várias vezes em busca da verdade suprema, algo que fez com que entrasse e saísse de vários mosteiros, experimentando diversas escolas do budismo até instaurar ele próprio a sua, de nome Soto, após o contacto, na China, com o mestre que certamente mais lhe marcou: Rujing.
Naturalmente, o seu pensamento, fundado na tradição zen, bem como os ensinamentos que transmitia aos seus discípulos, acabou reflectido na poesia que amiúde escrevia. Chegam-nos assim diversos poemas de grande teor espiritual, cujas imagens esforçam-se muito serenamente por estimular no seu leitor vislumbres do Eterno - ou simplesmente evidências da vida material que atestem a sua efemeridade e, por isso, secretamente impulsionem uma busca por algo de maior constância.
Os exemplos seleccionados irão certamente atestar tal sentença.