É Ele o verdadeiro místico(1),
quem pode revelar a forma do Informe
à visão destes olhos;
quem ensina a descomplexa via de O alcançar,
essa outra que não os ritos ou as cerimónias;
quem não te instiga a fechar portas,
a suster a respiração, a renunciar ao mundo;
quem te faz conhecer o Espírito Supremo
onde quer que a mente se apegue;
quem te ensina a permanecer sereno
no centro de todas as tuas actividades.
Sempre imerso em êxtase,
não abrigando o medo em Sua mente,
mantém o espírito da unidade
no centro de todos os deleites.
A morada eterna do Ser Eterno
está em todo o lado: terra, água, céu e ar.
Resoluto como o relâmpago,
o assento de quem busca
firma-se acima do vazio.
Aquele que está dentro fora está:
apenas a Ele vejo, e nada mais.
Kabir (1440 - 1518) (*)
(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa de Rabindranath Tagore ("Songs of Kabir", 1915)).
(1) A palavra original empregada por Kabir, e à qual recorre em inúmeras ocasiões ao longo das suas canções, é Sadhu. Embora tenha a sua origem no termo sädh, que significa "alcançar objectivos", a tradução literal de Sadhu é "bom homem". Contudo, no hinduísmo, é igualmente um termo bastante comum para designar um asceta, um praticante de ioga, um monge itinerante ou um místico. Em suma, alguém que percorre uma via de transcendência da matéria, visando assim a sua comunhão com o divino. Tendo em consideração o enquadramento do poema, optou-se pelo termo anteriormente enumerado em último lugar.
(*) Kabir será talvez um dos mais extraordinários e profundos místicos que a humanidade já conheceu.
Poeta de muitos louvores, ainda que de linguagem simples, nasceu no seio de uma família de brâmanes hindus, tendo mais tarde contacto com as ideias e práticas religiosas muçulmanas. Segundo uma das muitas lendas criadas em torno desta figura, teria sido adoptado por uma família de tais crenças. Em todo o caso, é um facto que Kabir, mesmo tendo sido um discípulo, em sua juventude, de Ramananda, se tornaria um crítico de ambas as correntes. Afinal, um dos seus traços mais originais foi precisamente a independência de crenças pré-estabelecidas e da imposição dos seus rituais religiosos. Ao invés, propunha o conhecimento de Deus por via directa, isto é, através da simples vivência do quotidiano e de cada instante que o compõe.
Kabir, além de poeta, foi um humilde tecelão - ofício que nunca abandonou enquanto viveu, mesmo contra os incessantes apelos dos seus discípulos mais íntimos, prontos a lhe conceder um modo de subsistência. Legou-nos não só as suas belíssimas canções plenas de transcendência, que em 1915 chegaram ao ocidente por meio do igualmente notável poeta indiano Tagore, como uma voz límpida e subversiva, à época, na sua fluidez penetrante - uma voz que advogava o divino de modo absoluto, além de qualquer religião instaurada pelo Homem, e a vida como uma comunhão perene entre a alma individual e a alma universal (a gota de água, no fundo, e o oceano que em nada são diferentes).
Quando faleceu, o seu corpo foi disputado por muçulmanos e hindus. Após um tempo de discórdia e ponderação (note-se que os hindus queimam os corpos dos seus defuntos e os muçulmanos enterram-nos), quando um veredicto foi alcançado representantes de ambas as facções abriram o seu caixão e nada lá encontraram a não ser um imenso ramo de flores. Reza a lenda que o seu corpo não mais foi visto. Que centelha de verdade residirá nesta história?
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