quarta-feira, 26 de outubro de 2016

CANÇÃO IV (*)


Não vás ao jardim florido:
amigo, não vás.
Em ti mesmo reside esse jardim.

Toma o teu lugar no seio 
de milhares de pétalas de lótus,
e daí contempla a Beleza Infinda.




Kabir (1440 - 1518)




(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore, em "Songs of Kabir" - 1915).





(*) Apesar de breve, esta canção/poema de Kabir encerra uma enorme significância. Desde logo por se tratar de um apelo indirecto à meditação. Repare-se, portanto, como serenamente instiga o leitor a abandonar a busca exterior e a centrar-se dentro do seu próprio ser, a visitar o seu próprio jardim interior.  Depois, pelo recurso à imagem do lótus. Como é sabido, é uma imagem de enorme carga espiritual, utilizada tanto por budistas como por hindus, que representa, sumariamente, o florescimento espiritual do Homem ou, em alternativa, o seu potencial florescimento espiritual. Note-se que a dita flor finca as suas raízes na lama, muitas vezes considerada como uma metáfora do efémero ou do mundo da matéria, e ainda assim, quando desabrocha, brinda o mundo com a sua beleza ímpar. Ou seja, mesmo tendo um corpo, mesmo correndo o risco de se perder em ilusões (as armadilhas de Maya), o Homem encerra em si esse potencial extraordinário: a hipótese de se tornar um ser veramente iluminado, transcendente, uma janela aberta ao Divino. Sabemos que Kabir teve contacto directo com o pensamento e as práticas hindus e muçulmanas, mas é igualmente provável que a doutrina budista tenha chegado ao seu conhecimento. Pois a imagem que o último terceto sugere lembra uma em que o próprio Buda surge por diversas vezes ilustrado: em profunda meditação no centro de uma imensa flor de lótus (ver abaixo). A imagem não é exclusiva do budismo, diga-se, mas não deixa de ser possível a sua associação, pelo que agora se poderá interpretar toda esta canção/poema como um convite à vivência do próprio estado de Buda - o florescimento do lótus que em semente todo o Homem traz ao peito.








terça-feira, 18 de outubro de 2016

CANÇÃO IX


Como alguma vez poderei expressar
aquela palavra secreta?
Oh, como poderei dizer: Ele não é isto,
Ele é aquilo?

Se eu disser que Ele está em mim,
então o universo será desonrado.
Se eu disser que Ele está fora de mim,
então a falsidade cobrir-me-á.

Ele faz com que o mundo interior e exterior
se tornem indivisíveis;
o consciente e o inconsciente
são ambos os Seus escabelos.

Ele não é manifesto nem oculto,
Ele não é revelado nem está por revelar.

Não existem palavras que digam
aquilo que Ele é.




Kabir (1440 - 1518)




(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore, em "Songs of Kabir" - 1915).