terça-feira, 8 de maio de 2018

SEIS MEMÓRIAS EM QUATRO POEMAS


I.

Lembro quando ela chega,
cintilante subindo as escadas,
com pressa de acabar a nossa separação.
Sem nunca estar saciada, falamos e os pensamentos
partilhamos; olhando um no outro, nunca basta;
mas nessa contemplação toda a fome é esquecida.


II.

Lembro quando ela se senta,
tão sóbria, tão decente diante de elegantes cortinas;
de quando em vez entoando quatro ou cinco canções,
outras vezes dedilhando duas ou três cordas.
Quando sorri, fá-lo além de qualquer comparação;
quando o rosto se entristece, que coração se não quebra?


III.

Lembro quando ela come,
a expressão do seu semblante à chegada dos pratos;
quer sentar-se, mas é demasiado tímida para tal,
quer comer, mas é demasiado envergonhada para começar;
mordiscando a comida, apenas, como se não tivesse fome,
erguendo a sua malga como se as forças lhe faltassem.


IV.

Lembro quando ela dorme,
tentando permanecer acordada enquanto outros dormitam,
desenlaçando o seu vestido sem que ninguém o peça,
repousando na almofada à espera de carícias,
e ainda assim temendo o olhar do homem ao seu lado,
deliciosamente corando de vergonha à luz do candeeiro.




Shen Yue (441 - 513) (*)







(Versões de Pedro Belo Clara).








(*) Shen Yue, nascido em Huzhou, província de Zhejiang, além de proeminente poeta, foi um conhecido historiador e homem de estado, tendo servido imperadores das dinastias Liu Song, Qi do Sul e Liang. 
O período em que viveu, importa aqui realçar, é por vezes conhecido como "Seis Dinastias", estendendo-se de 220 a 589 d.C.. Contudo, certos historiadores apreciam a subdivisão temporal desta era e, assim, descobre-se que o poeta viveu no período conhecido por "Dinastias do Norte e do Sul" (420 - 589), onde se contam, entre outras, as três que em vida serviu. Ressalve-se que o referido tempo foi assolado por uma guerra civil e um caos político tremendo, embora tenha se distinguido, curiosamente, por um ímpar florescimento das artes e da tecnologia e uma expansão de novos ideais religiosos. 
Acima de tudo, Shen Yue é conhecido por ser o autor do "Livro dos Song" (Song Shu), um valioso documento que relata a história da dinastia Liu Song, mas destacou-se igualmente pela inovadora aplicação das eufonias tonais (uso de palavras agradavelmente musicais, em rima ou não), no ensino das artes musicais e na elaboração de ensaios variados.
Do ponto de vista poético, Yue também foi pioneiro na forma de construção de um poema, tendo lançado as bases daquela que mais tarde viria a ser a poesia clássica chinesa. Sublinhe-se também que, por sua mão, começou por se imprimir à poesia um carácter levemente erótico, algo até então nunca tentado. O último dos quatro poemas aqui mudados para o português é um exemplo disso mesmo. A nota não é explícita, como se vê, mas implícita em poucas palavras, deixando o resto à imaginação do leitor.
Resta acrescentar que este conjunto de poemas foi criado em honra da amada do poeta, aqui dada a conhecer através de um processo evocativo onde até se vislumbram algumas das regras da época e do dia-a-dia das gentes com maiores posses. Apesar de serem quatro os poemas, eles espelham seis memórias, cada uma referente a seis alturas distintas do dia: quando a amada chega, quando se senta para se dedicar a uma actividade musical, quando ri, quando se entristece, quando chega a refeição e quando à noite se deita junto do seu esposo. 










2 comentários:

  1. Esse poema bem ao meu gosto de pesquisa, veio a calhar... por que a diferença. O quê a mulher oriental sabe, que as ocidentais, não dão a minima importância... creio que seja a conduta... pós rock hol, que muda completamente o modo de conduzir-se. A sofisticação, o belo, o sensível em troca de uma conduta mais independente e aberta, no trajar-se, comer e até amar... vou compartilhar..

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  2. Partilhe à vontade, minha amiga. Só tem o meu agradecimento.
    Volte sempre que a leitura lhe agradar.
    Beijos.

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