Que alegria essa noite. A mesma lâmpada nos iluminava...
Como envelhecemos! Como passam depressa a adolescência e a mocidade! Pensar que a maioria dos nossos amigos já estão nos Jardins sem Luz!... Estou tão emocionado que deves sentir bater meu coração.
Depois de vinte anos, aqui estou sentado em tua casa. Quando nos separámos, ainda não estavas casado, e eis que acariciei teus filhos e tuas filhas!
Deste a estas crianças uma educação perfeita. Sinto que te inclinaste sobre cada uma delas como te inclinavas outrora, sobre os belos poemas que escrevias.
Nas proximidades da tua casa, teu filho mais velho me cumprimentou respeitosamente. Perguntou pela minha saúde, pela minha família, pela minha terra natal. Desculpa-me, criança, por não te haver respondido. Eu escutava o murmúrio de um riacho que me conheceu quando eu era pequenino como tu...
Nossa velha amizade, Tchang-Tsé, é o meu mais precioso tesouro, pois estamos na idade em que o passado tem mais perfumes que um ramo de lilases em flor.
Du Fu (712 - 770) (*)
(Tradução de Cecília Meireles)
(*) A par de Li Bai, de quem foi um íntimo amigo, dedicando-lhe, inclusive, um poema de soberbos versos, Du Fu é considerado um dos príncipes maiores de toda a poesia chinesa já produzida. Autor de mais de mil poemas que até hoje sobrevivem, celebrizou-se pelo modo incrivelmente perfeccionista como encarava o seu trabalho, dotado de intrincadas rimas tonais e vocabulários de cariz original e inspiração magnífica.
Apesar de ter conhecido as vivências da corte, a sua passagem por lá foi deveras célere. Não obstante, os seus poemas registam diversas impressões recolhidas durante esses tempos. Viveu numa era de grande conturbação política e económica, e os conflitos que a assombraram mereceram de igual modo um registo poético.
Nos seus últimos trinta anos de vida, porém, optando por uma existência mais recatada, humilde e munida de parcos haveres, a pobreza daí resultante, bem como diversos problemas de saúde, viriam a assolar esse período de maior isolamento, sem que a sua poesia se privasse de tal influência.
Aos 58 anos, prostrado na miséria e na doença, morre, na companhia da sua esposa e filhos, numa barca que descia o rio Xiang, província de Hunan.
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