sábado, 28 de outubro de 2017

Cinco haiku de Tagami Kikusha


I.

Em dias de solidão
nem sequer um cuco chama
por esta viajante. ¹


II.

Perdida nos bosques -
apenas um som de folha
cai no meu chapéu. ²


III.

Esta lua e eu
fomos deixadas sozinhas - 
que frio sobre a ponte!


IV.

Nem uma só mancha
na neve desta manhã - 
já os raios do sol. ³


V.

Será que o outono
vem sozinho à minha vida?
Chuva em fim de tarde. ⁴




Tagami Kikusha (1753 - 1826) ⁵ 







(Versões de Luísa Freire in "O Japão no Feminino - Haiku, séculos XVII a XX", Assírio & Alvim, 2007)







(1) Dada a sua parecença, é muito provável que este haiku tenha sido inspirado num outro de Bashô, figura que se sabe ter alimentado a admiração de Kikusha. Eis uma possível tradução do poema de referência:

Vou cheio de tristeza - 
faz-me sentir mais sozinho
o cuco da montanha.  




(2) Escrito em 1781, durante a viagem que a autora realizou ao nordeste nipónico. No caminho de Yamagata para Sendai, Kikusha viu-se por uma noite inteira perdida no meio das montanhas locais. 



(3) Escrito durante a famosa viagem que, de modo inverso, copiou o itinerário da lendária jornada de Bashô pelo Japão. Por terminar de modo idêntico a um haiku da autoria do grande mestre, também este poema terá sido significativamente influenciado por este. Curiosamente, ambos terão sido compostos no Monte Nikko, o que reforça a possibilidade de ser verdadeira a alusão referida.



(4) Vagamente baseado num tanka tradicional, o haiku foi composto após a morte do pai da autora. 



(5) Nasceu na vila de Tasuki, província de Nagato (actualmente, Yamaguchi), filha de um médico. Apesar do que já se constatou, foi-lhe dado à nascença o nome de Michi. 
Poucos anos depois, o seu pai seria designado para um novo cargo, obrigando a família a deixar a sua vila natal. Contrai matrimónio aos dezasseis anos com um descendente de uma família de agricultores, também originária do mesmo local. Contudo, aos vinte e quatro enviúva sem nunca ter dado à luz. 
Foi aquando da promoção do seu pai, e respectiva mudança para Chôfu, que Kikusha se iniciou na arte do haikai, tornando-se discípula de um mestre local, aquele que lhe daria o nome pelo qual se notabilizaria. 
Já viúva, e antes de alcançar a meta dos trinta anos de idade, decide recriar as famosas viagens de Bashô, mas de modo inverso, inspirada igualmente nos relatos das jornadas do monge Shinran, o fundador do ramo Shin do budismo - ideologia pela qual acabou por se atrair. 
Mas as suas viagens não se resumiriam apenas ao que se expôs. Tantas outras empreendeu ao ponto de se ter tornado uma das viajantes femininas mais celebradas da época. Além disso, tornou-se versada em outras artes, não contabilizando aqui o haiku: na caligrafia, na pintura, na cerimónia do chá e, para resumir, em tocar koto de sete cordas, uma espécie de cítara. Evidências que, convenhamos, só corroboram a visão da autora perante o mundo e os seus mistérios: «O princípio que me guia tem sido sempre apreciar a vida».
Somadas todas as parcelas, decerto poucos discordarão das palavras de Makoto Ueda a respeito da autora, ele que se tornou responsável por traduzir partes do seu trabalho e, assim, apresentá-lo de modo consistente ao mundo ocidental: «Considerando as restrições colocadas nessa época à conduta feminina, pode dizer-se que Kikusha foi um espírito livre que viveu a vida à sua maneira». 
Humildemente, aqui lhe fazemos a nossa homenagem.








(Tagami Kikusha)





segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Três poemas de Wang Fan-chih (Parte II)


I.

Será bom por fim contemplar a cidade do nirvana¹, 
e assim deixar estas terras dos tempos do fim.
O céu concedeu-me vida, mas a morte
é o derradeiro abraço quente da terra.
Finalmente, vida e morte nada significam para mim
- sou rio em eterno fluir.


II.

Não necessitas de espelho para observar o teu rosto,
não tens de ser abastado para fazer caridade.
Senta-te apenas, e ser-te-á descoberto o rosto
do Buda que vive em ti


III.

Escuta bem: desfruta do teu tempo.
Na verdade, não te sobra muito:
ainda há pouco nascias
e em breve já terás partido.




Wang Fan-chih (séc. IX)








(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções de J.P. Seaton, in "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)










(1) O conceito budista de "Nirvana" é amplamente divulgado e sumariamente conhecido, sendo em geral entendido como o último estágio de evolução espiritual. 
Trata-se, claro, de um estado de ser, alcançado após a transcendência do desejo e dos apegos materiais manifestados por aqueles que ainda vivem iludidos quanto à sua real identidade. Em suma, a compreensão profunda de que o ser é mais do que aquilo que a sua mente dita.
Contudo, o autor, ou autores por detrás do nome Wanh Fan-chih, concederam um toque poético ao conceito, adicionando a palavra "cidade", o que poderá induzir em erro o leigo, já que não se trata de um qualquer lugar físico, embora confira essa sensação. A referência é ao "estado de Nirvana", à iluminação da consciência, ao florir do divino no mundano. Aqueles que o experienciam, portanto, dir-se-ão, sob essa óptica, "cidadãos do Nirvana", título que o poeta (ou poetas, repetimos) sabia ser seu de direito, dada a transformação interior que nele entretanto ocorrera. 


(2) Para uma compreensão mais directa e clara por parte do leitor, este pequeno poema foi alvo duma determinada arrumação de palavras durante o seu processo de tradução, adicionando-se inclusivamente pontes que não constavam na versão inglesa, que por si só era algo confusa e repetitiva, a carecer de melhor ligação entre versos.
Mas não se pretende realizar uma avaliação crítica ao seu tradutor, que decerto se empenhou ao máximo no labor da decifração. O que importa para o caso em concreto é simplesmente referir a extrema aproximação entre o método sugerido pelo poeta e o meio mais comum de meditação no budismo zen: "sentar-se quieto e em silêncio". 
A lógica por detrás do acto prende-se com o facto de em silêncio e em quietude o fluxo mental do ser humano decrescer, tornando-o assim mais vazio de conteúdo e, como tal, próximo daquilo que na realidade ele é. Descobrir o «Buda que vive em ti» é, pois, encontrar o divino em nós, atingir o que se referiu antes como sendo a «cidade do nirvana». 










sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Três poemas de Wang Fan-chih (1)


I. 

Mendigar pode prover uma boa vida,
levar-te para além da fome e do frio.
As cabeçorras rapadas destes monges taoístas
vivem sobre belas e rechonchudas bochechas. 


II.

Nunca houve um pai e um filho tão próximos 
quanto aqueles dois. Mil moedas de oiro 
não compravam um olhar duvidoso 
ou uma palavra maldosa de um sobre o outro.
Ainda assim, quando um deles 
de súbito adoeceu, tendo morrido, o outro 
afastou-se e permaneceu bem longe,
temendo pela sua própria vida.


III.

Poderão algum dia voltar a casa?
Labuta sem fim:
esposas em trabalhos forçados,
maridos reunidos à força,
rumo à guerra.






Wang Fan-chih (séc. IX) 





(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções de J.P. Seaton, in "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)






(1) Conforme foi dito numa publicação anterior, regressa-se a este autor com uma breve selecção de poemas que espelham o seu lado mais crítico sobre a sociedade e o mundo, constantemente regado pela ironia que o caracteriza. Expõe o ridículo, a injustiça e a incoerência humana de modo simples e directo, sem lugar para desculpas ou hesitações. Graças a este olhar, uma imagem mais clara do tempo que viveu é-nos dada com uma limpidez louvável. Assim nasce a incómoda constatação que, à parte a era e o lugar, pouco terá mudado com o render dos tempos...