I.
Em dias de solidão
nem sequer um cuco chama
por esta viajante. ¹
II.
Perdida nos bosques -
apenas um som de folha
cai no meu chapéu. ²
III.
Esta lua e eu
fomos deixadas sozinhas -
que frio sobre a ponte!
IV.
Nem uma só mancha
na neve desta manhã -
já os raios do sol. ³
V.
Será que o outono
vem sozinho à minha vida?
Chuva em fim de tarde. ⁴
Tagami Kikusha (1753 - 1826) ⁵
(Versões de Luísa Freire in "O Japão no Feminino - Haiku, séculos XVII a XX", Assírio & Alvim, 2007)
(1) Dada a sua parecença, é muito provável que este haiku tenha sido inspirado num outro de Bashô, figura que se sabe ter alimentado a admiração de Kikusha. Eis uma possível tradução do poema de referência:
Vou cheio de tristeza -
faz-me sentir mais sozinho
o cuco da montanha.
(2) Escrito em 1781, durante a viagem que a autora realizou ao nordeste nipónico. No caminho de Yamagata para Sendai, Kikusha viu-se por uma noite inteira perdida no meio das montanhas locais.
(3) Escrito durante a famosa viagem que, de modo inverso, copiou o itinerário da lendária jornada de Bashô pelo Japão. Por terminar de modo idêntico a um haiku da autoria do grande mestre, também este poema terá sido significativamente influenciado por este. Curiosamente, ambos terão sido compostos no Monte Nikko, o que reforça a possibilidade de ser verdadeira a alusão referida.
(4) Vagamente baseado num tanka tradicional, o haiku foi composto após a morte do pai da autora.
(5) Nasceu na vila de Tasuki, província de Nagato (actualmente, Yamaguchi), filha de um médico. Apesar do que já se constatou, foi-lhe dado à nascença o nome de Michi.
Poucos anos depois, o seu pai seria designado para um novo cargo, obrigando a família a deixar a sua vila natal. Contrai matrimónio aos dezasseis anos com um descendente de uma família de agricultores, também originária do mesmo local. Contudo, aos vinte e quatro enviúva sem nunca ter dado à luz.
Foi aquando da promoção do seu pai, e respectiva mudança para Chôfu, que Kikusha se iniciou na arte do haikai, tornando-se discípula de um mestre local, aquele que lhe daria o nome pelo qual se notabilizaria.
Já viúva, e antes de alcançar a meta dos trinta anos de idade, decide recriar as famosas viagens de Bashô, mas de modo inverso, inspirada igualmente nos relatos das jornadas do monge Shinran, o fundador do ramo Shin do budismo - ideologia pela qual acabou por se atrair.
Mas as suas viagens não se resumiriam apenas ao que se expôs. Tantas outras empreendeu ao ponto de se ter tornado uma das viajantes femininas mais celebradas da época. Além disso, tornou-se versada em outras artes, não contabilizando aqui o haiku: na caligrafia, na pintura, na cerimónia do chá e, para resumir, em tocar koto de sete cordas, uma espécie de cítara. Evidências que, convenhamos, só corroboram a visão da autora perante o mundo e os seus mistérios: «O princípio que me guia tem sido sempre apreciar a vida».
Somadas todas as parcelas, decerto poucos discordarão das palavras de Makoto Ueda a respeito da autora, ele que se tornou responsável por traduzir partes do seu trabalho e, assim, apresentá-lo de modo consistente ao mundo ocidental: «Considerando as restrições colocadas nessa época à conduta feminina, pode dizer-se que Kikusha foi um espírito livre que viveu a vida à sua maneira».
Humildemente, aqui lhe fazemos a nossa homenagem.
(Tagami Kikusha)