segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Três poemas de Wang Fan-chih (Parte II)


I.

Será bom por fim contemplar a cidade do nirvana¹, 
e assim deixar estas terras dos tempos do fim.
O céu concedeu-me vida, mas a morte
é o derradeiro abraço quente da terra.
Finalmente, vida e morte nada significam para mim
- sou rio em eterno fluir.


II.

Não necessitas de espelho para observar o teu rosto,
não tens de ser abastado para fazer caridade.
Senta-te apenas, e ser-te-á descoberto o rosto
do Buda que vive em ti


III.

Escuta bem: desfruta do teu tempo.
Na verdade, não te sobra muito:
ainda há pouco nascias
e em breve já terás partido.




Wang Fan-chih (séc. IX)








(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções de J.P. Seaton, in "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)










(1) O conceito budista de "Nirvana" é amplamente divulgado e sumariamente conhecido, sendo em geral entendido como o último estágio de evolução espiritual. 
Trata-se, claro, de um estado de ser, alcançado após a transcendência do desejo e dos apegos materiais manifestados por aqueles que ainda vivem iludidos quanto à sua real identidade. Em suma, a compreensão profunda de que o ser é mais do que aquilo que a sua mente dita.
Contudo, o autor, ou autores por detrás do nome Wanh Fan-chih, concederam um toque poético ao conceito, adicionando a palavra "cidade", o que poderá induzir em erro o leigo, já que não se trata de um qualquer lugar físico, embora confira essa sensação. A referência é ao "estado de Nirvana", à iluminação da consciência, ao florir do divino no mundano. Aqueles que o experienciam, portanto, dir-se-ão, sob essa óptica, "cidadãos do Nirvana", título que o poeta (ou poetas, repetimos) sabia ser seu de direito, dada a transformação interior que nele entretanto ocorrera. 


(2) Para uma compreensão mais directa e clara por parte do leitor, este pequeno poema foi alvo duma determinada arrumação de palavras durante o seu processo de tradução, adicionando-se inclusivamente pontes que não constavam na versão inglesa, que por si só era algo confusa e repetitiva, a carecer de melhor ligação entre versos.
Mas não se pretende realizar uma avaliação crítica ao seu tradutor, que decerto se empenhou ao máximo no labor da decifração. O que importa para o caso em concreto é simplesmente referir a extrema aproximação entre o método sugerido pelo poeta e o meio mais comum de meditação no budismo zen: "sentar-se quieto e em silêncio". 
A lógica por detrás do acto prende-se com o facto de em silêncio e em quietude o fluxo mental do ser humano decrescer, tornando-o assim mais vazio de conteúdo e, como tal, próximo daquilo que na realidade ele é. Descobrir o «Buda que vive em ti» é, pois, encontrar o divino em nós, atingir o que se referiu antes como sendo a «cidade do nirvana». 










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