sexta-feira, 30 de março de 2018

Dois poemas de Liu Yuxi


I. Os rebentos de pessegueiro do Templo Xuandu ¹


A poeira vermelha dos trilhos púrpura
rodopia diante dos seus rostos.
Todos dizem que vieram para ver as flores,
são milhares de pessegueiros no Templo Xuandu.
E todos plantados desde que o senhor Liu partiu.




II. Nova visita ao Templo Xuandu ²


O grande pátio do templo está coberto de musgo.
Flores silvestres baloiçam 
onde outrora pessegueiros floresciam. 
Onde está o sacerdote que os plantou?
O velho senhor Liu está de volta.





Liu Yuxi (772 - 842) ³








(Versões adaptadas de Pedro Belo Clara a partir das traduções para inglês de Bill Porter).








(1) Ambos os poemas contam uma curiosíssima história na sua origem.
Este em particular foi escrito no ano de 815, após o regresso do poeta a Chang'an, a capital do país. Havia sido banido durante dez anos para a província de Hunan, por ter apoiado as acções reformistas do governo vigente numa altura de sucessão imperial.
Findado o exílio, o poeta não deixou de realizar a sua pequena vingança, e de acordo com os meios que tinha à sua disposição. Deu-se assim o nascimento deste poema, subtilmente satírico. 
Repare-se nas pistas encriptadas: o púrpura, cor da realeza, é uma referência aos caminhos da cidade imperial, o vermelho da poeira alude ao deslumbramento e à indulgencia das sensações, o nome do templo (Xuandu ou Hsuan-tu) significa "capital celestial" e a imagem dos pessegueiros surge como a personificação dos milhares de oficiais do exército imperial que haviam sido promovidos durante o exílio de Liu Yuxi. O último verso do poema tem também um significado oculto. Embora aluda ao próprio poeta, retornando do seu exílio, faz referência a Liu Ch'en, um mítico herbalista que se perdeu um dia nas montanhas Tientai, sobrevivendo apenas à custa de pêssegos até o seu regresso, volvidos duzentos anos.
Apesar de tanto simbolismo e encriptação, escusado será dizer que graças a este poema Yuxi foi novamente banido da corte.




(2) Ainda não se fez a devida referência ao Templo em causa, por isso acrescenta-se que se situa na província de Hunan, na China. É actualmente um templo taoísta, embora as suas origens sejam budistas (séc. V d.C.).
Sobre este segundo poema, escrito depois de ter terminado o segundo exílio do poeta, esclarece-se que foi escrito em abril de 828 e que incluía o seguinte prefácio, escrito pela mão do autor: 
«No ano de 805, quando era vice-director do Departamento de Agricultura, não havia flores neste templo. Foi também esse o ano em que fui despromovido a prefeito de Lienchou e, mais tarde, a vice-prefeito de Chang-te. Dez anos se passaram; fui chamado de novo à capital e todos me contaram sobre um sacerdote taoísta que plantara pessegueiros miraculosos que encheram o seu templo com nuvens de rebentos avermelhados. Então escrevi esse primeiro poema como registo de uma tão invulgar visão. De novo fui banido, e agora, após quatorze anos, voltei, e desta vez para ocupar o cargo de director do Departamento de Recolhas. Uma vez mais, visitei o Templo Xuandu, mas desta vez nem uma árvore se avistava, apenas as ervas baloiçavam à brisa primaveril. Portanto, escrevo agora mais quatro linhas [n.d.t.: são cinco, na versão adaptada ao português] em antecipação à minha próxima visita».
Até no prefácio o poeta não deixou de parte o teor cáustico do seu discurso. Esclareça-se que a referência ao pátio do templo repleto de musgo é uma crítica subentendida ao pátio do palácio imperial e o sacerdote taoísta em causa será Wang Shuwen, o antigo primeiro-ministro reformista que Liu apoiou.
Tendo ido, de novo, longe de mais nas suas críticas, Liu Yuxi foi uma vez mais banido pouco tempo depois de ter redigido este poema.




(3) Liu Yuxi nasceu no sul da China e tornar-se-ia um dos seus mais proeminentes poetas, mas também um dos que mais vezes enfrentou o exílio. Destacou-se igualmente nas áreas do ensaio e da filosofia.
Passou com distinção nos exames imperiais, e desde cedo muitos lhe auguraram uma carreira brilhante. Porém, vários percalços, desde a morte do pai ao apoio público ao ministro reformista após a morte do Imperador e da tomada de posse do filho, nem sempre lhe possibilitaram uma rápida ascensão. Os consecutivos exílios também não prestaram um valioso auxílio. Ainda assim, ocupou diversos cargos públicos e de conselheiro de departamentos estatais. A título póstumo, foi nomeado "Ministro da Receita Pública". 
A sua poesia é essencialmente directa e simples, muito ao estilo popular. A sua temática é muito variada, tendo versado sobre as condições de vida do povo, os costumes populares, temas históricos, a amizade, a bebida, a nostalgia do passado, entre outros. Até aos nossos dias sobreviveram cerca de setecentos poemas, alguns deles reflexo do seu pensamento budista. Travou amizade com diversos poetas, muitos deles destacados autores, entre os quais Bai Juyi, cujos trabalhos já por diversas vezes neste espaço partilhámos.







(O poeta Liu Yuxi, conforme retratado no Wan Xiao Tang - 1743)


sexta-feira, 16 de março de 2018

DESPERTAR MADRUGADOR NUMA MANHÃ DE PRIMAVERA (*)


A primeira luz do sol nascente
ilumina as traves da minha casa;
o primeiro bater de portas que se abrem
ecoa como o som de um tambor.

O cão dorme enrolado sobre si mesmo
na soleira de pedra, pois a terra
está encharcada em orvalho;
os pássaros aproximam-se da janela
e tagarelam sobre a beleza do dia.

Graças aos efeitos prolongados do vinho,
tenho a cabeça ainda pesada;
com a recente arrumação das roupas invernais,
o meu corpo ficou mais magro.

Desperto com o coração vazio
e a mente na sua totalidade extinta.
Ultimamente, com o passar das noites,
não tenho tido sonhos acerca do lar.




Bai Juyi (772 - 846)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Arthur Waley.)







(*) Este poema, onde se identificam laivos das influências do pensamento budista e taoísta sobre o autor, é apenas uma parte de um outro que Bai Juyi escreveu no ano de 825, enquanto governador de Suzhou - uma das maiores cidades da província de Jiangsu, no leste da China, uma espécie de "Veneza do Oriente". 
Apesar de não o admitir abertamente, sobressai a difícil adaptação do poeta ao lugar, comprovada pelas saudades que sentia da sua terra natal - aparentemente ultrapassadas na altura da composição deste poema.









(Ponte em Suzhou, China)