I.
Vive o homem a vida numa tigela de poeira
Como bichinhos dentro de um jarro
Todo o dia andando à volta
Nunca sai lá de dentro
Não nos calha a ventura
Só temos em sorte desgraças
O tempo parece um rio
Que corre. Um dia, acordamos velhos.
(Tradução de Gil de Carvalho)
II.
Habito a montanha,
ninguém me conhece.
Entre nuvens brancas,
o silêncio, sempre o silêncio.
(Tradução de António Graça de Abreu)
III.
Por sorte, habito solitário entre penhascos,
no rasto de pássaros, longe dos homens.
O que existe em redor do meu jardim?
Nuvens brancas abraçando rochas negras.
Habito por aqui há tantos anos,
quantas vezes o Outono deu lugar à Primavera?...
Hoje, compreendo melhor: riquezas, honrarias,
o nome, a fama, tudo inútil e vazio.
(Tradução de António Graça de Abreu)
Han Shan (circa 700 - 780) (*)
(Traduções retiradas de: "Poemas de Han Shan", A.G.A, Macau, Cod. Ed. 2009; "Uma Antologia de Poesia Chinesa", G. de C., Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.)
(*) Para quem o considera uma entidade individual, eis uma enigmática figura sobre qual pouco se sabe, inclusive as datas exactas da sua existência material. É geralmente defendido tratar-se de um homem letrado que posteriormente optou por uma vida de eremita nas montanhas Tiantai, província de Zhejiang. Os seus poemas sobre essa "montanha fria" tornar-se-iam famosos. Grande parte da sua poesia hoje conhecida, aliás, parece ter sido produzida nesse eremitério, dada a centralidade que a sua paisagem assume, seja de modo directo ou mais subentendido.
Importa contudo ressalvar que o próprio nome, Han Shan, significa nada mais nada menos do que "montanha fria", o que levou muitos estudiosos a duvidar da hipótese de se tratar de um só homem, ao invés de um conjunto de pessoas que, remetidas a uma vida eremita nessas montanhas, com tal nome assinavam as suas criações. Na verdade, na antologia dos poemas de Han Shan existem algumas discrepâncias de tema e tom, o que leva a crer a existência de outras mãos imiscuídas na sua produção. Poderia até tratar-se, inicialmente, de um homem só, ao qual outros se seguiram, mas cujo nome deste primeiro adoptaram para si, dado o local do seu isolamento voluntário. O mesmo parece ter acontecido com o companheiro que historicamente lhe é atribuído, Shih Te ("O orfão").
Ainda assim, é visto como tendo sido um "mestre Zen", ou um "bodhisattva" (Manjusri), provavelmente devido ao aspecto sobrenatural que paira sobre a única história conhecida sobre si. Não obstante, é um facto que a sua poesia, tantas vezes espalhada nas árvores, pedras e muros de quintas rurais, torna-se na primeira a assimilar as influências do Budismo Zen, corrente de pensamento que surgiu algures no séc. VII no Império do Meio, durante o despontar da Dinastia Tang, com vincados salpicos que lembram a essência do pensamento taoísta.
Os poemas agora seleccionados atestam profundas observações sobre a existência humana, os logros do ego, a impermanência das coisas... No reverso, cintilam as virtudes do silêncio e de uma vida de isolamento, por forma a privilegiar um contacto mais directo e autêntico com a "verdadeira face da existência".
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